Periodicamente o programa de armas nucleares da República Democrática Popular da Coréia (RDPC) ocupa espaço na mídia nacional e internacional, sendo usualmente veiculado como decorrente de uma política externa agressiva e irracional. As armas nucleares são um dos temas candentes da agenda de segurança internacional, mas a questão do desarmamento e controle dessas armas deve, também, ser analisada sob a ótica das circunstâncias específicas de cada panorama de segurança regional.
No contexto regional específico do Nordeste da Ásia, a RDPC tem protagonizado sucessivas crises na região, e esse artigo tem como propósito evidenciar que o programa de armas nucleares da RDPC é decorrente da percepção de insegurança desse Estado, não sendo fruto de um a política externa irracional. Iniciaremos nossa analise sumarizada, recordando que a RDPC manteve-se à margem do Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), até 1985, quando o governo soviético, convenceu o governo norte-coreano a assinar o TNP e abandonar o seu emergente programa nuclear, em troca do fornecimento de energia à RDPC (GRAHAM, 2004, p. 140). No entanto, mesmo tendo assinado o TNP em 1985, o Acordo de Salvaguardas entre a RDPC e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), entrou em vigor apenas em 10 de abril de 1992. É importante observarmos que no início da década de 1990, a realidade norte-coreana alterou-se drasticamente.
Neste período, a queda dos regimes comunistas do leste europeu e a posterior desagregação da URSS deixaram a RDPC praticamente sem apoio externo. Em 1993, a proporção do Produto Interno Bruto (PIB) da Coréia do Sul era 15 vezes maior que o da sua vizinha e rival do Norte, e a população do Sul era duas vezes maior que a do Norte. Além disso, o orçamento de defesa de Seul era seis vezes superior ao de Pyongyang. Mesmo possuindo um exército duas vezes mais numeroso, com a mesma superioridade de 2 para 1 em relações a carros de combate, a percepção de segurança do governo norte-coreano foi alterada para um quadro negativo. A própria superioridade numérica em termos militares podia ser ilusória, uma vez que a qualidade do equipamento norte-coreano era tecnicamente inferior, sendo que especialistas ocidentais apontavam para uma possível deficiência de manutenção, bem como de combustível, necessário ao adestramento. Além disso, o suporte dos EUA à Coréia do Sul, incluindo a presença de tropas norte-americanas estacionadas no país, permaneceu o mesmo de antes da do término da Guerra Fria. A RDPC era, e ainda é, na verdade, um Estado fraco e que se percebia ameaçado (WALTZ, 1999, p. 361).
De forma coincidente com esse contexto, ainda em 1992, iniciaram-se as sucessivas crises protagonizadas pelo governo de Pyongyang, tendo como pivô o desenvolvimento de um programa de armas nucleares. O clima de tensão entre os governos norte americano e sul-coreano de um lado e da RDPC no outro, permaneceu até junho de 1994 quando, logo após a visita do ex-presidente Jimmy Carter a Pyongyang, os dois lados aceitaram iniciar as negociações do chamado Framework Agreement. Nos meses seguintes, foi acordado que em troca da eliminação do programa nuclear norte-coreano, os EUA começariam a normalizar as relações diplomáticas entre os dois Estados e reduziriam as sanções comerciais à RDPC. Adicionalmente, um Consórcio Internacional (constituído por Coréia do Sul, Japão e EUA) forneceria óleo pesado à RDPC, bem como construiria dois reatores de água leve para atender à necessidade adicional de energia norte-coreana. No entanto, houve um grande retardo no início da construção desses reatores que, em 2000, ainda estavam em construção. Além disso, o fornecimento de óleo combustível acordado ocorria de modo irregular e as sanções econômicas norte-americanas não foram integralmente levantadas (MANN, 2006, p. 272).
As eleições presidenciais norte-americanas levaram ao poder George W. Bush que, assim como os congressistas republicanos, condenava a política de “apaziguamento” do governo Clinton para com a RDPC (Ibid., p. 273). Na seqüência das ações empreendidas pelo governo norte-americano, após os ataques de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush, em seu discurso anual no Congresso norte-americano em 2002, nomeou a RDPC, o Iraque e o Irã como o “Eixo do Mal”, isto é, os países que constituíam uma grave ameaça à segurança dos Estados Unidos, pois, desenvolviam armas de destruição em massa ou patrocinavam o terrorismo regional e mundial.
Nesse contexto e com os preparativos norte-americanos para a invasão do Iraque, no início de 2003, a RDPC dispensou os inspetores da AIEA, retirou-se do TNP, recolocou em operação o reator de Yongbyon e anunciou que iria reprocessar seu estoque de Urânio, já consumido naquele reator, visando à obtenção de Plutônio para a construção de armas nucleares. Na seqüência da invasão do Iraque, o governo norte-coreano parece ter entendido que a única maneira de impedir uma ação militar futura, contra a RDPC seria por meio da dissuasão nuclear.
A situação adquiriu novos contornos a partir de 9 de outubro de 2006, data em que a RDPC anunciou a realização de um teste nuclear nas proximidades de P’unggye. Sensores sísmicos e amostras atmosféricas coletadas pelos norte-americanos confirmaram a declaração norte-coreana, porém avaliaram o teste realizado como tendo uma potência explosiva inferior a 1 Kiloton. A despeito da reduzida potência do artefato detonado, a RDPC demonstrou para a comunidade internacional, especialmente para os EUA, que possuía, de fato, armas nucleares. Esta mensagem foi reforçada com os testes subseqüentes de mísseis balísticos de curto e médio alcance que complementaram a credibilidade do potencial arsenal nuclear norte-coreano.
Desde então, as negociações envolvendo EUA, RDPC, China, Coréia do Sul, Japão e Rússia, com o propósito da fazer com que o governo norte-coreano abdique do seu programa nuclear, têm sido pautadas por pequenos avanços seguidos de retrocessos e novas crises. Em 25 de maio de 2009, o governo norte-coreano anunciou a realização, com êxito, de um segundo teste nuclear. Estimativas do governo norte-americano apontaram para a detonação de um artefato nuclear com potência explosiva estimada entre 2 e 4 Kilotons. Este foi o último grande retrocesso nas Six-Party Talks, que atualmente, mostram sinais de avanço no sentido de abandono do programa nuclear norte-coreano (mas não das armas já desenvolvidas) em troca de compensações econômicas e diplomáticas, principalmente por parte do governo norte-americano.
No conjunto, é mais que patente que o regime norte-coreano enfrenta problemas profundos e lida com ameaças internas e externas permanentes. A RDPC é o último Estado comunista que mantém o modelo Stalinista, sendo detentora de uma economia falida e rica apenas em efetivos militares. Assim, mesmo tendo desenvolvido armas nucleares e ogivas passíveis de serem transportadas por seus mísseis balísticos, a RDPC também está presa aos princípios da deterrence, pois seu emprego levaria à destruição do país. Apesar de ser, usualmente, apresentado pela mídia como um ditador inconseqüente, Kim Jong Il não demonstra a menor propensão ao suicídio político. Por outro lado, quanto mais inseguro o governo da RDPC se sentir, maior será a intensidade com que buscará armas nucleares. Portanto, uma maior garantia de segurança, principalmente dos EUA, em troca de um término verificável do programa nuclear norte-coreano, aparenta ser um componente basilar para reduzir as sucessivas crises desencadeadas pela RDPC e seu programa de armas nucleares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- GRAHAM, Thomas Jr. Commonsense on Weapons of Mass Destruction. Seattle: University of Washington, 2004.
- MANN, Michael. O Império da Incoerência – a Natureza do Poder Americano. Rio de Janeiro: Record, 2006.
- Nuclear Threat Initiative (NTI). North Korea Profile. Disponível em: http://www.nti.org/e_research/profiles/NK/index.html. Acesso em 12 jan 2010.
- _____. North Korea’s Nuclear Test and its Aftermath: Coping with the Fallout. Disponível em: http://www.nti.org/e_research/e3_north_korea_nuclear_test.html. Acesso em: 14 jan. 2010.
- USA. The White House. President Delivers State of Union Address. Disponível em: http://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2002/01/20020129-11.html. Acesso em: 17 jan.2009.
- WALTZ, Kenneth. N. Peace, Stability, and Nuclear Weapons. In – Art, R & Waltz, K. (ed). The Use of force – Military Power and International Politics. New York: Rowman & Littlefield Publishers, INC. 1999.
Marcos Valle Machado da Silva é Capitão-de-Fragata (RM-1). Mestrando em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (mbvalle2002@yahoo.com.br).
Fonte: Mundorama
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