
Como Clausewitz pontuava, a guerra é uma atividade social. Ela envolve a mobilização e a organização de homens, quase nunca de mulheres, com propósito de infligir violência física; ela envolve a regulação de certos tipos de relações sociais e tem uma lógica própria.
Cada sociedade tem suas formas típicas de guerra. O que aqui chamamos de ‘guerra’, o que líderes políticos e militares denominam como guerra, é, de fato, um fenômeno específico que se formou na Europa entre os séculos XV e XVIII, embora tenha passado por diferentes fases desde então. Foi, assim, um fenômeno vinculado à evolução do Estado Moderno.
Cada uma das fases foi caracterizada por um diferente modo de guerrear, envolvendo diferentes tipos de forças militares, estratégias e técnicas. Contudo, apesar das diferenças, a guerra era o mesmo fenômeno: uma construção de centralização, de racionalização, de hierarquização da ordem, de territorialização, do Estado Moderno.
1. A guerra e o surgimento do Estado Moderno
Segundo a definiçaõde Clausewitz, a guerra é um ato de violência com o propósito de forçar o oponente a cumprir nosso desejo. Entendido “nosso” e “oponente” como Estados, entende-se que a guerra acontece entre atores estatais objetivando a um fim político, ou seja, um interesse do Estado.
Esse tipo de definição se estabeleceu apenas no final do século XVIII. O precedente mais próximo desse tipo de guerra era o praticado por Roma contra os bárbaros. Mesmo assim, apenas praticado de um lado, visto que os bárbaros não tinham a noção de separação entre Estado e Sociedade. As guerras entre as cidades-Estados gregas, da mesma forma, não faziam diferença entre polis e cidadãos.
Entre a queda do Império Romano e o fim do período do Medievo, a guerra foi travada por diferentes atores: a Igreja, senhores feudais, tribos barbáricas, cidades-Estados – cada uma com sua formação militar própria.
Nos primeiros anos de formação dos Estados nacionais europeus, os monarcas erguiam exércitos para a guerra por meio de coalizões de senhores feudais, da mesma forma que a ONU de hoje precisa mobilizar contribuições voluntárias de Estados individuais para suas operações de paz. Gradualmente, foram consolidando suas fronteiras e centralizando o poder usando suas habilidades de crescimento econômico para contratar exércitos mercenário, que lhes deu certa independência dos senhores feudais. Contudo, os mercenários não eram confiáveis; sua lealdade não era algo com a qual se pudesse contar.
Assim, os mercenários foram substituídos, com o tempo, por exércitos permanentes, o que possibilitou ao monarca criar forças militares especializadas e profissionais.
O novo tipo de organização militar era típico do novo arranjo administrativo que surgia associado à modernidade. O soldado era o agente que Max Weber chamou de autoridade racional-legal.
O estabelecimento de exércitos permanentes sob o controle do Estado era parte integral da monopolização da legitimidade da violência, intrínseca ao Estado Moderno. O interesse do Estado tornou-se a justificativa legítima para a guerra, suplantando o conceito de justiça, jus ad bellum, nascido da teologia. Nesse sentido, foram criadas regras sobre a legitimidade da guerra as quais foram codificadas nas leis internacionais da guerra.
Enquanto o interesse do Estado racional é aclamado como o objetivo da guerra, outras causas emotivas passaram a instigar a lealdade e a persuadir os homens a arriscarem suas vidas. Essas causas eram religiosas, como as que inspiraram o exército de Cromwell na Inglaterra.
2. Clausewitz e as guerras do século XIX
A tese central da obra On War de Clausewitz é a de que a guerra tende aos extremos. O autor escreveu o livro em 1816, tendo vivido o contexto das guerras napoleônicas, de que foi prisioneiro. A guerra seria composta por três níveis: i) nível do Estado e dos líderes políticos, ii) nível dos militares ou dos generais, e iii) nível da sociedade ou do povo. Respectivamente, esses três níveis operam por meio da razão, da estratégia e da emoção. A partir dessa visão trinária da guerra, Clausewitz derivou seu conceito de guerra absoluta, melhor entedida como um conceito ideal ou abstrato hegeliano; é a tendência inerente da guerra que deriva dos três níveis, de suas lógicas próprias. A guerra tem sua própria existência, que está em tensão com realidades empíricas.
A lógica era expressa em termos da ação recíproca dos três níveis. No nível político, o Estado encontra resistência para alcançar seus objetivos e por isso precisa pressionar seu oponente. No nível militar, o alvo é o desarmamento do oponente a fim de lograr os objetivos políticos, caso contrário há o risco do contra-ataque. E, finalmente, a força da vontade política (the ‘will’) depende do sentimento popular; a guerra desperta paixões e hostilidades que podem se tornar incontroláveis. Para Clausewitz, a guerra era uma atividade racional mesmo quando emoções e sentimentos são mobilizados a seu serviço.
A guerra é sempre caracterizada pelo que Clausewitz chama de “fricções”: problemas de logística, pouca ou má informação, incerteza quanto ao clima, indisciplina, terrenos íngremes, organização inadequada, etc., – tudo o qual faz guerra real ser bem diferente da guerra planejada no papel.
Com o aumento em escala das tropas, tornou-se mais difícil que a organização coubesse a uma única pessoa. Dessa forma, surgiram teorias estratégias que criaram certas doutrinas militares e que, mais tarde, passaram a ser operações de procedimentos padronizados.
As duas principais teorias do “fazer-guerra” são a teoria do enfraquecimento (“attrition”) e a teoria manouvre. A primeira implica que a vitória é alcançada ao destruir, enfraquecer, o inimigo; é normalmente associada a estratégias de defesa e grande concentração de força. A segunda, depende do elemento surpresa. Nesse caso, mobilidade e dispersão são importantes para criar incerteza e alcançar velocidade. Clausewitz pondera que ambas as teorias são complementares, e a vitória vem quando são combinadas entre si.
O modelo de guerra napoleônico no qual todos os cidadãos estavam envolvidos não se repetiu até a I Guerra Mundial. Entretanto, uma série de fatores que se desenvolveram no século XIX trouxe a visão clausewitzeana de guerra moderna próxima da realidade. Um desses fatores foi o avanço da tecnologia industrial que passou a se aplicar ao campo militar. Particularmente importante foi o desenvolvimento das ferrovias e dos telégrafos que aumentou a mobilidade das Forças Armadas.
Um segundo fator foi o crescimento das alianças interestatais, responsável por envolver todos os grandes países da Europa na I-GM.
Um terceiro importante elemento foi a codificação de princípios da guerra como a Declaração de Paris (1856), que regulava o comércio marítimo em tempos de hostilidade; a Convenção de Genebra (1864), a Declaração de São Petesburgo (1868), as Conferências de Haia de 1899 e de 1907, e a Conferência de Londres de 1908, todas contribuíram para um corpo de leis internacionais concernentes à condução da guerra – o tratamento de prisioneiros, doentes e feridos; de não combatentes; assim como a definição de “necessidades militares” e a ideia de armas e táticas que iam de encontro a essas normatividades.
Em suma, guerras modernas, como desenvolvidas no século XIX, envolveram guerras entre Estados com uma incrível capacidade de mobilização, além de uma crescente organização racional e doutrina científica para comandar esses enormes conglomerados de força.
3. As Guerras Totais do século XX
Na obra de Clausewitz, há a tensão entre sua insistência na razão e sua ênfase no desejo (“will”) e na emoção. Homens de gênio forte e heróis militares são figuras centrais em On War; sentimentos como patriotismo, honra e braveza, são parte estrutural do livro. Igualmente significativo, contudo, são suas conclusões sobre a natureza instrumental da guerra, a importância da escala e a necessidade para uma conceitualização analítica da guerra. De fato, a tensão entre razão e emoção, arte e ciência, “attrition” e “manouvre”, defesa e ilegalidade, instrumentalismo e extremismo, constituem os componentes-chave do pensamento clausewitzeano. Essa tensão, pode-se dizer, atingiu seu ápice no século XX.
Primeiramente, as guerras da primeira metade do séculoXX foram guerras totais envolvendo uma vasta mobilidade de energias nacionais. Numa guerra total, a esfera pública tenta incorporar a sociedade como um todo, eliminando assim a diferença entre público e privado. A diferença entre civis e militares, combatentes e não combatentes, acaba por inexistir.
Em segundo lugar, como as guerras envolvem mais e mais pessoas, a justificativa da guerra em termos de interesse do Estado se tornou vazia.
Na I-GM (Primeira Guerra Mundial), o patriotismo pareceu suficientemente poderoso para demandar sacrifícios de milhões de jovens voluntários para guerrear em nome do Rei ou da Nação. Para os Aliados da II-GM tratou-se de uma guerra contra o mal: uma guerra contra o nazismo e a proteção de seus modos de vida. Lutaram em nome da democracia e/ou do socialismo contra o fascismo. Na Guerra Fria, as mesmas ideologias maniqueístas foram suscitadas para justificar a continuação dos conflitos.
A ideia de que a guerra é ilegítima começou a ganhar mais aceitação depois do trauma da I-GM. O Pacto Briand-Kellog de 1928 renunciava a guerra como instrumento político, a não ser em casos de auto-defesa. Essa proibição foi reforçada nos tribunais de Nuremberg e de Tóquio e, posteriormente, codificada na Carta das Nações Unidas. Atualmente, é abertamente aceito que o uso da força somente seja justificável em dois casos: legítima defesa e quando é sancionada pelo Conselho de Segurança da ONU (Capítulos VI e VII da Carta).
Terceiro lugar, as técnicas de guerra moderna se desenvolveram até o ponto em que sua utilidade passou a cair. A plataforma de armamentos se tornou extraordinariamente complexa e onerosa, o que fez diminuir sua utilidade em função dos custos e de necessidades logísticas.
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PS: Esse texto faz parte de um resumo de livre tradução do autor do site.
Referência bibliográfica:
KALDOR, Mary. New & Old Wars: organized violence in a global era. Stanford: Stanford uniersity Press, 2001, pp. 15-32.
[Foto retirada do site: <<http://vespeiro.com/2009/12/>> ]
Fonte: Mundialistas
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