Rubens Barbosa
Os EUA promoveram no início de 2012 a mais profunda mudança estratégica na sua política externa e de defesa desde 2002, quando George W. Bush, sob o impacto do atentado de 11 de setembro de 2001, radicalizou a ação americana no exterior. A redução do déficit público, a nova concepção da estratégia militar baseada mais nos avanços tecnológicos e a emergência da China aceleraram a decisão de Barack Obama.
A ação da Casa Branca pode ser vista também como o reconhecimento das grandes transformações por que passa o cenário internacional: a perda da importância relativa da Europa do ponto de vista econômico e de defesa pela ausência de ameaças de segurança, os efeitos da crise econômica sobre as economias americana e europeia e a crescente importância econômica da Ásia.
O governo dos EUA, com as novas diretrizes, procura defender seu interesse, coerente com a Estratégia de Segurança Nacional, de 2002. Numa das passagens mais cruas do unilateralismo então vigente, o documento afirmava que "os EUA serão suficientemente fortes para dissuadir potenciais adversários de buscar um fortalecimento militar, com a expectativa de ultrapassar ou igualar o poder" americano. A Estratégia de Segurança Nacional, atualizada recentemente por Obama, na mesma linha, visa "aqueles que buscam impedir a projeção de poder dos EUA" e reconhece que, "a longo prazo, a emergência da China como uma potência regional poderá afetar a economia e a segurança dos EUA de diversas formas. O crescimento do poderio militar chinês, contudo, deve ser acompanhado de maior clareza quanto às suas intenções estratégicas a fim de evitar a ocorrência de fricções na região".
A nova política, a ser desdobrada nos próximos anos, aponta para um corte substancial no orçamento de defesa e traz a reorientação estratégica voltada para o futuro. O redesenho das Forças Armadas presume que guerras com grande mobilização de tropas terrestres não voltarão a repetir-se e, em consequência, serão reduzidas, de forma significativa, as ações do Exército e da Infantaria Naval. O tipo de guerra que se desenha para o futuro será determinado por ações secretas, respaldadas por informações da inteligência e por veículos não tripulados (drones), e pela guerra cibernética, como ocorreu no Irã, com ações secretas e a sucessão de mortes de cientistas nucleares que afetaram o programa e as instalações nucleares.
Ao reafirmar o poder global americano, no State of the Union em janeiro - "quem diz que os EUA estão em declínio, não sabe do que está falando" -, Obama responde à percepção de que o poderio da China está aumentando perigosamente e necessita ser contrabalançado pelos EUA. O CSIS, think tank de Washington, por solicitação do Pentágono, recomendou a transferência de forças do Nordeste da Ásia para o Mar do Sul da China, o aumento do número de submarinos na base de Guam e o posicionamento de porta-aviões na Austrália.
As primeiras manifestações dessa mudança estratégica foram o anúncio do estabelecimento de uma base permanente na Austrália, o envio de 2.500 fuzileiros navais para ajudarem a manter a segurança da região, o deslocamento de 60% da força naval para o Pacífico até 2020, a aproximação com Mianmar e a ampliada cooperação naval com a Índia e o Japão. A saída total do Iraque, depois do fracasso militar e da reconstrução, e a redução de efetivos militares na Europa completam as medidas iniciais.
Embora os movimentos populares árabes, a crise Israel-Palestina e o programa nuclear iraniano continuem a manter os EUA envolvidos no Oriente Médio, a nova política prevê o "reequilíbrio voltado para a Ásia-Pacífico e o apoio à Índia, como âncora econômica e um elemento de segurança para toda a região do Oceano Índico". A estratégia visa a aumentar a presença americana na Ásia e a contrapor o poderio chinês do ponto de vista de defesa, econômico e comercial.
A China, a segunda economia global, amplia seu alcance militar e econômico na região Indo-Pacífica, podendo levar à criação de bloco sinocêntrico, dominando o Pacífico Ocidental. Pelo Mar do Sul da China, declarado de interesse nacional dos EUA, passa um terço do comércio mundial, mais de US$ 5,3 trilhões. A região abriga reservas inexploradas de gás e petróleo e é foco de longas disputas territoriais da China, sobretudo com as Filipinas, o Vietnã e, em especial, Taiwan.
Apesar de a forte reação negativa chinesa ter-se manifestado em declarações públicas do governo de Pequim, os dois países estabeleceram um diálogo estratégico e de defesa de alto nível.
Obama aproveitou a abertura da reunião da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) e o encontro de cúpula dos países do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec) para divulgar o redesenho da estratégia para a região. Na Apec o presidente americano anunciou a negociação de acordo de livre-comércio entre os países-membros da Parceria Trans-Pacífico (PTP), sem a participação da China, "por não atuar conforme as regras do comércio internacional".
Há, do ponto de vista de Washington, uma clara rationale para o aumento da presença militar e econômica na Ásia, o que, numa visão de médio e longo prazos, está muito mais de acordo com o interesse nacional americano do que a manutenção das guerras no Oriente Médio.
É prematuro afirmar que os primeiros passos dessa nova estratégia possam levar a uma confrontação entre EUA e China, propiciando o surgimento de algo semelhante à guerra fria, que pôs em campos opostos os EUA e a URSS. O que se pode afirmar, contudo, é que uma nova área de tensão surgiu no já conturbado cenário internacional e que, para os EUA, vai ser mais difícil gerenciar a aliança asiática do que administrar a relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
* FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON (1999-200)
Fonte: Estadao
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