No Cáucaso, é comum referir-se a antigas disputas regionais, como “frozen conflicts”[1]. Cabe identificar, também, a existência de um quadro de “mentes congeladas”, ao redor desta cadeia de montanhas, em virtude da opressão exercida pelo culto persistente de um passado histórico, real ou imaginário, que busca reforçar discórdias entre os habitantes desta parte do mundo, sem que haja visão prospectiva favorável sobre como as atuais discordâncias serão resolvidas. .
A turbulência que se vive, no momento, no Oriente Médio e Norte da África, poderá, no entanto, provocar efeito de “aquecimento global”, que afete a situação de inércia regional caucasiana. Conforme mencionado no texto publicado anteriormente, em Mundorama, com respeito a conflitos hoje em curso no Oriente Médio e Norte da África, há comentários do tipo “impossível de prever ou incrível não ter sido previsto”. Daí, pode ser prudente efetuar exercício de reflexão sobre as causas de tensões internas e externas que afetam os principais atores no Cáucaso.
Para o observador em Baku, no entanto, não estaria acontecendo, nesta parte do mundo, algo parecido com a falência de ideologia tipo “Panarabismo”ou, segundo artigo publicado na “Foreign Affairs”[2], como resultado de “Postocolonial Time Disorder”. Análises deste tipo, entre outras, identificam razões e problemas existentes na década de 1950, para justificar a turbulência ora em curso no Oriente Médio e Norte da África.
No que diz respeito à região caucasiana, são condicionantes distintas que poderão, sim, determinar que o referido aquecimento em países da vizinhança venha a descongelar conflitos locais, no sentido de facilitar sua solução.
Suas causas resultam da forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética[3]. Na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista. Este privilegiava lideranças das chamadas “repúblicas soviéticas” que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo “velho regime”.
Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de “autodeterminação”, que veio a provocar o surgimento de “repúblicas soviéticas” – etapa intermediária para a consolidação do socialismo – com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição. O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos estes mini governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior ocorreria, com a universalização do poder do proletariado. A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimeto da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, ansiosos por serem conduzidos ao comunismo.
Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem no Caúcaso, Norte e Sul – segundo literatura disponível sobre o assunto – encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de “nação”. Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético – natural, como se sabe, da Georgia caucasiana – caberia distinguir nação, de raças, tribos, grupos linguísticos ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território. A nação, segundo ele, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.
Coerente com o raciocínio do “materialistmo histórico”, Stalin idenficaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente, como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional – da mesma forma que a de classe – surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.
A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento “burguês” sobre o tema é, como entendido aqui, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação, evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.
Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos revindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. “Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta, para obter o benefício em questão.”
Na medida em que novas classes dirigentes foram se consolidando nessas “Repúblicas”, métodos de governança soviéticos vieram a ser adotados, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”. Enquanto estas “modalidades de controle social” íam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades fortaleciam as elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais.
A fase pós-Stalin testemunhou a subida ao poder de nova geração, adepta a métodos menos truculentos para se preservar no Governo, na medida em que as repúblicas soviéticas foram se tornando estados-nações. Ao Sul do Cáucaso, “déspotas esclarecidos” assumiam a direção na Armênia – Karen Demirchian (1974-88) – no Azerbaijão – Heydar Aliyev (1969-82) – e na Georgia – Eduard Shervadnadze (1972-85) . Os três se beneficiaram da ânsia por estabilidade decorrente da turbulência e terror vigentes na fase stalinista. Todos consolidaram feudos virtuais em seus domínios. O problema é que, cada vez mais, grupos fortaleciam seus interesses recíprocos, em detrimento do benefício maior dos habitantes dos territórios sobre sua autoridade.
Ao Norte da região, não se desfrutava de processo idêntico. Ao contrário da busca da estabilidade, mesmo que fosse com a consagração de ambições pessoais, Chechênia, e Daguestão – entre as áreas objeto deste estudo que, cabe reiterar, busca identificar explicações gerais para problemas atuais, sem reivindicar exatidão científica – foram marcadas por período de turbulência política, com o início da fase pós-soviética da década de 1990 e início do milênio.
A Rússia, como é sabido, envolveu-se em duas guerras na Chechênia, no período de 1994-96, durante o Governo de Yeltsin, e 1999, no de Putin. Desnecessário lembrar os massacres na escola de Beslan, Ossétia de Norte, e em teatro em Moscou, por combatentes pela independência daquela região ao Sul da Rússia..
De acordo com documentação aqui disponível, haveria três pricipais explicações para tais conflitos e atos de violência. A primeira diria respeito ao fato de que, tanto ao Norte do Cáucaso, como ao Sul, revindicações étnicas por antigas classes dominantes foram incorporadas por novas lideranças políticas – já referidas repetidas vezes acima – como argumentos legítimos, de forma a se perpetuarem no poder. A segunda envolve disputas fundiárias históricas, que passaram a alimentar ímpetos genocidas, no interesse de grupos sociais, sempre dispostos a consolidar suas prerrogativas. A terceira pode ser encontrada no repetido emprego da força, por governos de Moscou, tanto para eliminar opositores, quanto para manter governantes que lhe fossem simpáticos. Este último fator contribuiu, sem dúvida, para polarizar as tensões regionais.
Mais importante, com a fase pós-soviética, chegou ao Norte do Cáucaso outra forma de mobilização, expressa no fundamentalismo islâmico. Rapidamente, o discurso radical foi assimilado pelos militantes chechênios, com pesada herança de combate contra os russos, seja contra o Império, na década de 1840-50, seja contra a dominação soviética. Em momento algum – sempre de acordo com a literatura disponível aqui – tais lutas tiveram conotação religiosa, na forma adotada após a implosão da URSS.
Cabe notar, a propósito, que os guerrilheiros passaram a adotar vocabulário de combatentes islâmicos em outros cenários de guerra. Assim, os russos passaram a ser chamados de “infiéis”, seus mortos passaram a ser “mártires” e os simpatizantes de Moscou denominados “hipócritas”.
Houve, no entanto, inovações nos procedimentos de relações públicas. Assim, enquanto o rebelde chechênio Imam Shamil[4], no século XIX, escrevia cartas ao Sultão Otomano, hoje, os líderes daquela região criam “sites”, como o “Book of a Mujahideen” e cobram acesso por múltiplos cartões de crédito.
Este texto tem procurado argumentar, portanto, que a violência ocorrida, no Cáucaso, após a desintegração da URSS, decorre, por um lado, da fraqueza e forma desordenada de extinção do Estado Soviético e, por outro, da determinação dos “governos nacionais” que o sucederam – tanto os que obtiveram reconhecimento internacional, quanto os que não o conseguiram, no sentido do emprego da força para preservarem seus egoismos pessoais ou regionais. Não representam, nessa perspectiva, exatamente a defesa histórica de identidade ou destino nacionais.
Assim, reitera-se, que cada parte que se envolveu em conflito havia sido privilegiada, durante o período soviético, com uma chamada “administração autônoma”. Daí, a classe dirigente destes enclaves, sem querer renunciar a prerrogativas consagradas, decidiu recorrer ao emprego da força – com o benefício do abundante material militar deixado pelos exércitos soviéticos, em retirada – para transformar antigas instituições soviéticas em novos estados. Não fossem as estruturas administrativas herdadas e certas ambições pessoais que motivavam a preservação de privilégios adquiridos, as guerras pós-soviéticas talvez não tivessem ocorrido.
Na medida em que tais conflitos foram adquirindo vida própria, disputas que, conforme já reiterado, tinham origem pessoal ou regional, passaram a adquirir conotação étnica. Hoje, os conflitos são lembrados como lutas de libertação nacional ou lutas trágicas em defesa de integridade territorial da mãe pátria. Uma geração completa de crianças cresceu sustentada por tais afirmações patrióticas.
Segundo consta, em algumas regiões que hoje reivindicam autonomia, currículos escolares foram reescritos, para convencimento de gerações futuras de que haveria conecção entre supostos estados antigos e atuais.
Em resumo, a desordem pós-soviética no Caúcaso não foi resultado de rivalidades naturais, entre nações em busca de independência, mas, sim, o reflexo da capacidade da comunidade internacional de tolerar algumas formas de secessão e não outras. Assim, secessões bem sucedidas, como as da Armênia, Azerbaijão e Georgia, foram legitimizadas com o reconhecimento internacional e admissão em organizações internacionais.
Aqueles regimes não reconhecidos – Nagorno-Karabakh, Abcássia e Ossétia do Sul – foram vistos, no exterior, como tentativas desesperadas de racionalizar a secessão. Uma diferença óbvia, entre os reconhecidos e não reconhecidos foi, simplesmente, o tamanho. Os não reconhecidos eram insignificantes, em termos populacionais: menos de 200.000 na Abcássia e Nagorno-Kabakh, e talvez ao redor de 70.000 na Ossétia do Sul. Representavam, no entanto, parte expressiva do território dos países reconhecidos, dos quais queriam se separar: cerca de 15% da Georgia e do Azerbaijão.
No início do milênio – segundo dados disponíveis – era difícl para visitantes identificar diferenças de estilo de vida, a ponto de estabelecer identidades nacionais distintas, entre as terras ocupadas pelos habitantes de estados reconhecidos ou não. A falta de eletricidade e outras deficiências de infra-estrutura, a corrupção, a ausência de governança e de governabilidade eram as mesmas.
As diferenças se encontravam, apenas, entre os projetos dos personagens que não queriam renunciar aos privilégios e prerrogativas obtidos durante o período soviético. Suas ambições, no entanto, eram idênticas, através do Cáucaso, fossem seus países reais ou imaginários: manter-se no poder.
No final da década de 1990, e início dos anos 2000, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressugir, sem que modalidades de governança adotadas durante aquelas sete décadas de escuridão tivessem sido desmanteladas.
Enquanto isso, velhos hábitos ligados à doutrina stalinista perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Caúcaso, vinculadas a estas práticas antigas mantinham mitos consgrados nos lugares de sempre. Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento stalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento soviético, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que retomaram seus conflitos históricos.
Apenas quando houver o compromisso de desenterrar o passado recente e os responsáveis pelos erros cometidos, durante o período de dominação soviética, tenham seus erros devidamente avaliados, poderia haver mudanças significativas nas formas de governança ou desgovernança no Cáucaso, Sul e Norte.
É essa motivação que poderá agitar os países ao Sul do Cáucaso, como efeito da onda de reivindicações em curso no Oriente Médio.
As populações aqui – tanto jovens, quanto mais velhos – querem livrar-se da opressão da persistente invocação, pelas classes dirigentes, de passado cheio de massacres – ocorridos ou não – sem referêcia a projetos de paz futura. Conforme se procurou expor acima, este contexto favorece, apenas, aos que desejam perpetuar estruturas herdadas do período soviético, em benefício de interesses próprios.
Esta é a realidade opressiva alvo de manifestações, em defesa das liberdades individuais. Como consequência, seria possível imaginar também o relaxamento das tensões entre os dois povos, ora submetidos ao mesmo tipo de opressão.
“Impossível de prever ou incrível não ter sido previsto”, eis a questão que prevalece, seja com respeito ao futuro dos “frozen conflicts”, ao redor do Caúcaso, seja quanto à possibilidade de que “mentes congeladas” dos habitantes desta região possam despertar e reagir contra a forma de pressão que lhes vem sendo imposta, por dirigentes interessados em se manter no poder, através da repetição de um passado de conflitos imaginados e da ausência da imaginação de um futuro de paz.
[1] A partir da década de 1990, com a independência da Geórgia, Armênia e Azerbaijão, ao Sul do Cáucaso, reacenderam-se conflitos entre estes países ou entre comunidades neles residentes. Os separatismos cresceram e a instabilidade aumentou, com tensões crescentes na Tchetchênia, Daguestão, Ossétia, Abkházia e no enclave de Nagorno-Karabakh.
[2] Artigo pubicado pela “Foreign Policy”, em 12/03/2011.
[3] Vide texto de minha autoria publicado por Mundorama, em 17.04.2010, cujos argumentos são aqui repetidos.
[4] Nicholas Griffin. “Caucasus – A Journey to the Land between Christianity and Islam”. The Chicago University Press. 2004.
Paulo Antônio Pereira Pinto é diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriormente, como Cônsul-Geral em Mumbai, entre 2006 e 2009 e, a partir de 1982, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. Na década de 1970 trabalhou, na África, nas Embaixadas em Libreville, Gabão, e Maputo, Moçambique e foi Encarregado de Negócios em Pretória, África do Sul. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com)
Fonte: Mundorama
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