Salvador Raza mostra como o Brasil pode aprender com a experiência indiana
A demanda de meios militares deveria refletir escolhas político-burocráticas que
maximizassem a capacidade dos orçamentos de defesa de financiar estratégias.
Entretanto, forças políticas podem reorientar decisões na direção que maximize
a função de utilidade social do orçamento nacional, contingenciando
alternativas estratégicas a sistemas de armas não otimizados para as demandas
de segurança. Isso implica em que, quando existirem múltiplas alternativas
válidas para a forma da função de utilidade do complexo tecnológico industrial
de defesa, um grande número de modelos de produção igualmente válido pode
ser desenhado.
Essa equação reflete a tensão entre duas lógicas. De um lado, temos a
racionalidade instrumental dos projetos de força, na forma de sistemáticas de
concepção das capacidades articuladas de defesa, que enxergam na indústria de
defesa um fator de auto-suficiência de logística de produção e manutenção de
sistemas de armas vitais. Segundo essa lógica, o complexo tecnológico industrial
de um país é um bem nacional que deve ser mantido para assegurar as
capacidades que a nação acredita possa necessitar no futuro, mesmo que para
isso tenha que custear sua ineficiência econômico-financeira. De outro lado,
temos a racionalidade da boa administração pública, que não vê distinção entre
as indústrias de defesa e outros setores industriais na produção de riquezas e
bem-estar social. Segundo essa lógica, o complexo tecnológico industrial de
defesa de um país, submetido às forças de mercado, deveria construir
autonomamente seus próprios mecanismos de auto-sustentação econômica e
competitividade.
A Índia está desenvolvendo um robusto programa de modernização de seus
meios militares, a um custo projetado de US$ 64 bilhões, empreendendo uma
trajetória com quatro vertentes mutuamente complementares. Primeira Vertente
Essa vertente contempla a fabricação de plataformas e vetores de armas com
grau de sofisticação e eficiência limitado pela formas e funções demonstradas
em modelos já operacionais e testados. Os projetos nessa vertente basicamente
obedecem à lógica de auto-suficiência, concentrando capacidades nas unidades
industriais das forças armadas e empresas privadas específicas (estaleiros, por
exemplo), com grande impacto nas economias locais, tendo em vista a escala
das demandas de mão-de-obra de baixa qualificação que esse tipo de indústria
demanda, gerando benefícios sociais importantes.
Para o desenvolvimento dessa vertente, a Índia conta com mais de 50
laboratórios e centros de pesquisa em defesa. Recentemente, o Parlamento
recomendou que pelo menos 15% do orçamento de defesa fosse alocado para
pesquisa e desenvolvimento, visando alcançar uma relação de 70:30 entre bens
produzidos internamente e bens importados, dentro de um plano de 10 anos,
para alcançar uma condição de auto-sustentação da indústria de defesa.
Entretanto, os resultados ainda não se materializaram, principalmente pelo
desalinhamento entre as prioridades da política de defesa e as prioridades de
ciência e tecnologia.
Segunda Vertente
Essa vertente está pautada na industrialização de itens de manutenção
preventiva e corretiva e de itens destinados ao recompletamento de consumos
operacionais, que empregam tecnologias já demonstradas para sua fabricação e
que possam ser construídos com baixo custo de adaptação de sistemas de
produção já instalados. Os projetos nessa vertente basicamente obedecem à
lógica de mercado, mesmo para itens críticos como munição e mísseis.
A vulnerabilidade da não auto-suficiência de fabricação, nesse caso, é
compensada por estoques reguladores e estratégicos. Embora o capital
imobilizado seja grande, o sistema de finanças públicas desonera as forças
armadas dos custos contábeis decorrentes.
Terceira Vertente
Nessa vertente, a Índia considera a construção mediante licença de todos os
sistemas que as forças armadas necessitam e que possam ter acesso via mercado
– enquadram-se nessa categoria, desde subsistemas e equipamentos de
comunicação e de guerra eletrônica e softwares embarcados, até grandes
sistemas de armas, tais como o tanque Vijayanta e as aeronaves MIG. Os
projetos nessa vertente, em sua maioria, são empreendimentos públicos, com
uma empresa estatal integradora e transferência de tecnologia para empresas
nacionais subcontratadas para industrialização de subsistemas por meio de
mecanismos de offset.
Apesar desses mecanismos, os licenciamentos parecem não ter efetivamente
contribuído para o desenvolvimento do tanque nacional Arjun e das aeronaves
de combate nacionais, além de também não ter contribuído para reduzir a
dependência estrangeira de manutenção de equipamentos estrangeiros
operados pelas forças armadas indianas. Essa situação parece decorrer da
limitada escala da produção dos equipamentos fabricados sob licença, o que não
justificaria a implantação de unidades de fabricação na Índia, acabando por
gerar, quando muito, linhas de produção ou de montagem dedicadas nas
instalações produtivas dos países vendedores, com praticamente nenhuma
transferência de tecnologia.
Ou seja, “licenciamento” passa a ser mais a estratégia de negócio do que
mecanismo de substituição de importação por desenvolvimento de tecnologia
autônoma, principalmente quando a escala de produção é baixa e o nível de
capacidade do sistema a ser produzido é muito sofisticado/alto.
Quarta Vertente
Já nessa vertente, a Índia estabelece a importação direta de sistemas que não
possam ser enquadrados nas três vertentes anteriores, tais como sistemas que
integram capacidades de processamento dinâmico de detecção, identificação e
avaliação de dados com vetores de ataque. Essa opção tem sido objeto de muitas
críticas, já que implica no abandono da lógica de auto-suficiência que marcou os primeiros anos da construção de um sistema de defesa autônomo indiano, logo
após sua independência. Para reforçar as críticas, os dados acumulados parecem
apontar que, ao contrário da expectativa, a aquisição de armas de nova geração
de um mesmo fabricante daquelas já existentes, ou um aperfeiçoamento das
armas existentes pelo mesmo fornecedor, não reduz o custo de aquisição,
porque os novos sistemas ou sistemas modernizados envolvem a integração de
vários sistemas de outras companhias que não tinham colaborado na fabricação
do modelo original.
Embora não existam pesquisas substantivas e dedicadas nessa área, as quatro
vertentes praticadas na Índia se assemelham muito ao que parece ser a
realidade brasileira. Sob essa premissa, a transitividade da conclusão de que
somente uma política forte de pesquisa e desenvolvimento, com a colocação de
encomendas no mercado nacional, parece gerar algum resultado satisfatório e
ganhar relevância e pertinência frente à notícia da parceria estratégica FrançaBrasil para a construção de submarinos. Podemos estar mais sustentando a
continuidade da indústria bélica francesa, que enfrenta dificuldades, do que
adquirindo capacidade autônoma para a indústria de defesa brasileira. O tiro
pode sair pela culatra!
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