Lições da indústria de defesa da Índia (2)
Salvador Raza mostra como o Brasil pode aprender com a experiência indiana
A Índia é um dos dez países que mais gasta atualmente na aquisição de sistemas
de armas no mundo. Essa condição não é um casuísmo militar, mas sim uma
decisão política duplamente lastreada. Um dos lastros é dado pelo projeto de
força indiano que confronta suas demandas de segurança nacional no complexo
de ameaças de seu entorno estratégico; o outro lastro é dado pelo projeto de
uma robusta indústria de defesa escorada no entendimento de que gastos em
defesa são investimentos na indústria nacional.
Para a construção desses projetos, o projeto de força e o projeto de indústria de
defesa, o governo da Índia teve que remover barreiras eregidas ao longo do
tempo por uma tecnocracia corporativa. Havia barreiras impostas por regras de
funcionamento e por uma estrutura tributária, que por não considerarem a
complexidade e as particularidades da segurança, tratavam as indústrias de
defesa com a mesma lógica de mercado imposta a outros setores da economia. E
havia barreiras construídas pelo planejamento de defesa, que por não entender
como as indústrias de defesa funcionavam em uma economia de mercado – e
por não considerar essa condição parte da equação de segurança – não
adequava o desenho da força ao desenho das competências e capacidades da
indústria de defesa.
Sob essas barreiras a defesa justificava sua ineficiência na ausência de sistemas
de armas modernos, enquanto a indústria de defesa justificava sua ineficiência
na inexistência de um projeto de força que instruísse o planejamento estratégico
empresarial na busca de patamares de auto-sustentação. Essa dupla ineficiência
se retroalimentava na miopia do planejamento do governo, criando um círculo
vicioso expresso na equação descrita abaixo, que denominamos “espiral de
dependência”: as barreiras levantadas pela tecnocracia econômica na defesa de
princípios de mercado inibem o desenvolvimento da indústria de defesa
nacional, tendo como resultado a necessidade de importação de sistemas de armas para atender as demandas de segurança e como não há como “frear ou impedir” essa importação com argumentos econômicos, pois eles se baseiam em uma lógica de segurança, que por ser eminentemente política, suplanta as prioridades da lógica da tecnocracia econômica, o projeto de defesa acaba por ser definido em termos de requisitos de capacidades (sistemas de armas) sem vínculos estruturais com um projeto de indústria nacional.
O motor dessa espiral é a inconsistência nascida da desarticulação entre a lógica
que instrui o projeto de força e a lógica que instrui o projeto da indústria de
defesa. Enquanto, isoladamente, ambos os projetos possam apresentar
argumentos de auto-sustentação igualmente válidos, entre si, eles são
assimétricos e competitivos, sendo essa assimetria e competitividade somente
removidas pela lógica econômica que ajusta as regras de transação (inclusive
aquelas apresentadas na forma de barreiras tarifárias e não-tarifárias) para criar
as condições de possibilidade para que o projeto de força e o projeto da
indústria de defesa ganhem consistência interna e externa.
A solução dada pelo governo da Índia para frear a espiral de dependência,
assegurando a consistência interna do projeto de força com o projeto de defesa e
a consistência externa de ambos com a política econômica do país, foi integrar
essas três lógicas – de defesa, da indústria e econômica - na política nacional: o
projeto de força é uma construção política para a segurança, a indústria de
defesa é uma construção política para o arranjo produtivo da defesa, e a
economia para a segurança (security economics – como conhecido na
literatura) é uma construção política das barreiras e incentivos para o projeto de
força e para o arranjo produtivo da defesa.
Para dar consecução a essa idéia tomaram-se algumas medidas corajosas. Em
2001 a Índia abriu todo (100% - literalmente) o seu mercado de defesa para
investimentos privados, permitindo investimentos estrangeiros diretos (FDI)
em até 26%, para áreas selecionadas, criando as condições de base – fiscais e de
credibilidade - para o crescimento sustentado da indústria de defesa indiana. Os empresários nacionais entenderam e ocuparam os espaços de oportunidade
criados. Atualmente há cerca de 5.100 indústrias fornecendo,
aproximadamente, 30% de todos os componentes e subsistemas de defesa,
injetando na economia local US$ 7 bilhões.
Fazem parte dessas indústrias fabricantes e provedores de serviços como a
Mahindra & Mahindra, Tata Group, Kirloskar Brothers, Larsen & Toubro,
Ashok Leyland, Jindal, Max Aerospace & Aviation, e Ramoss Índia. Os mesmos
nomes que vemos na indústria automotiva, aeronáutica, de serviços, etc. O setor
aeroespacial, em particular, integra mais de 500 pequenas empresas no arranjo
produtivo da defesa indiano, contribuindo com 231 novas tecnologias
patenteadas e transferidas para o setor comercial para uso dual (spin off).
Além da abertura do mercado e de regras de incentivo para FDI, o governo
indiano criou novas regras para offset, exigindo que 30% das compras no
exterior acima de US$ 70 milhões fosse investido na fabricação de componentes
e serviços no país, com o propósito de gerar novas empresas e novas condições
de mercado para produtos que demandam longo prazo de retorno de
investimentos.
Além disso, criou-se uma lista de tecnologias aplicadas a sistemas de armas não
letais com benefícios tributários. Incluem-se nessa lista sistemas de armas e
gestão de processos na segurança pública (policiamento urbano e controle de
distúrbios), equipamentos de sensoriamento, vigilância e gestão de fronteiras,
sistemas de segurança tecnológica, com ênfase na proteção de sistemas de
informação. Esses sistemas fomentam a inclusão de pequenas empresas no
arranjo produtivo de defesa, enquanto atendem simultaneamente a necessidade
das forças armadas e das forças de segurança pública (polícia) em ações
constabulares (operações de “não-guerra”).Mais importante, alocou-se anualmente cerca de 7,5% do orçamento de defesa para o design de inovação em defesa, visando investigar a mediação e o suporte que as novas tecnologias de informação e comunicação oferecem à capacidade empreendedora de transpor barreiras organizacionais, intelectuais e culturais para aperfeiçoar produtos e processos existentes, para desenvolver produtos e processos inovadores que atendam à requisitos de eficácia em defesa distintos dos existentes, e para conceber ambientes cognitivos e estratégicos ainda não integrados à experiência humana, explorando molduras analítico-teóricas que explicitem as fronteiras entre conhecimento científico e intuitivo, e que estabeleçam pontes práticas entre esses domínios do conhecimento para a concepção de novas tecnologias em atendimento a futuras demandas de defesa e
empresariais.
Infelizmente, no Brasil, poucos sabem o que Design de Inovação significa. Não
existe ainda nenhum curso sobre o tema, fazendo com que, provavelmente, os
gestores públicos com responsabilidade na geração de políticas públicas não
sejam qualificados nessa competência, atuando basicamente de forma intuitiva,
sem os conhecimentos e o treinamento necessários para modificar o atual
estado de ineficiência funcional nacional nos três pilares da segurança: no
desenho e gestão do projeto de força, na configuração e manutenção do
complexo tecnológico industrial de defesa nacional, e na segurança econômica.
A Índia é um dos países que mais investe em design de inovação, com centros de
pesquisa dedicados na construção e reconstrução contínua dos princípios e
conhecimentos que instruem o projeto de força e o projeto da indústria de
defesa nacional, ambos sob a lógica integradora da economia da segurança.
Há muito que aprender com a Índia, e muito que nossas indústrias podem
aproveitar da abertura do mercado indiano a parcerias com empresas
estrangeiras de defesa – nossas no caso, inclusive porque ambos os países
apresentam grande semelhança nos grandes marcos de suas trajetórias
históricas da defesa.Por exemplo, a primeira fábrica de armas e munições da Índia data de mais de 200 anos, estabelecida em 1801, em Cossipore. Nossos arsenais têm início com a vinda da Família Real em 1808. A independência da Índia, bem como a do
Brasil, enquanto defasadas no tempo em mais de 100 anos, deram forte impulso
à capacidade de auto-defesa, alavancando uma indústria nacional de defesa
subordinada à gestão governamental. Ambas experienciaram uma expansão no
final dos anos 60 e início dos anos 70, até as crises do petróleo imporem regras
econômicas que não mais compensavam internamente as ineficiências de um
projeto de força anacrônico e a ausência de mecanismos para a auto-sustentação
de empreendimentos industriais e de serviços privados.
Mas as semelhanças param aí. Enquanto a indústria de defesa no Brasil entra
em falência e não conseguimos, até hoje, produzir um projeto de força nacional,
a Índia vem promovendo sua indústria de defesa, projetando aumentar de 39
para 72 os grandes empreendimentos privados integrados ao arranjo produtivo
de defesa nacional.
As lições aprendidas com a Índia permitem enunciar sete dimensões de ações
simultâneas como recomendação para o Brasil alavancar o desenvolvimento de
seu arranjo produtivo de defesa:
1. Desregulamentação de áreas específicas da indústria para substituição de
importações e criação de normas e procedimentos para o incentivo e controle de
offset, inclusive para empresas privadas.
2. Incentivo, inclusive com financiamentos e benefícios a fundo perdido, de
processos de transferência de tecnologia que aumentem a capacidade de
produção instalada, e incentivos, para fabricação mediante licença, de sistemas
de armas de última geração.
3. Modernização da infraestrutura de defesa e sua articulação com políticas de
desenvolvimento industrial por meio de cartas de intenção para aquisição de
projetos mediante licenciamentos e aquisição de projetos nacionais
desenvolvidos com tecnologias que possam ser demonstradas dentro do escopo
desenhado nos diagramas de futuros.
4. Capacitação civil para a defesa, com o apoio e fomento ao desenvolvimento
de centros de análise independentes com capacidade de gerar e impulsionar o
design de inovação.
5. Desenho de um projeto de força nacional transparente, com referência e
sustentação nos centros de investigação e reflexão nacional para a defesa com
apoio das agências de fomento à pesquisa.
6. Estudos e projetos para o entendimento das leis de formação e gestão de
arranjos produtivos de defesa, articulando a economia de segurança com os
projetos de força nacionais e sua disseminação em fóruns nacionais
especializados e não especializados, inclusive no domínio da iniciação científica
em nível de graduação e conhecimento tecnológico nas escolas de formação
básica.
7. Modelagem analítica, exploratória e avaliativa do projeto de força e de
negócios articulados com o projeto de força, e construção de mecanismos
formais e informais para a tradução de seus resultados em propostas de
políticas públicas, estruturas programáticas de governos e planos estratégicos
de investimentos articulados.
Esperemos que os responsáveis pela elaboração de nosso Plano Nacional de
Defesa tenham consciência (e competência) para incorporar esses requisitos em
suas metas, sem o que, esse Plano não cumprirá com as condições de
transparência, não estabelecerá vínculos com um projeto de força, que precisa
ser criado, e não estabelecerá mecanismos de capilaridade de competências de
ensino, pesquisa e extensão que o projeto de força, o projeto da indústria de
defesa e a economia de segurança exigem.
Dentre todos, esse último item é fundamental e deve ser sempre a primeira
prioridade em projetos de defesa. Respeitando essa prioridade, então, talvez,
possamos evitar o vexame de ver o CNPQ, órgão responsável pelo fomento à
pesquisa no Brasil, indeferir, em 2008, projeto de pesquisa sobre modelagem
exploratória da indústria de defesa e projeto de força, por ser o tema
“irrelevante”; ou evitar o vexame de ver a CAPES indeferir também em 2008 pedido de abertura de curso de formação de pessoal em Design de Inovação no
Projeto de Força por absoluta incompetência de seus assessores na área de
defesa, com uma exposição de motivos claramente elaborada por quem nada
conhece da área.
Sem centros independentes de pesquisa em defesa, estaremos fadados a seguir
trajetória de sustentação da indústria de defesa distinta daquela que a Índia
traçou para si, afinal, se não fossem centros independentes, artigos como esse
nem existiriam.
Precisamos urgentemente que a CAPES, o CNPQ, a FINEP e órgãos de fomento
de pesquisa nacionais, como a FAPESP, por exemplo, atuem para além do
corporativismo das disciplinas consolidadas e exerçam suas responsabilidades
em criar e manter essas novas áreas de conhecimento: o projeto de força, o
design de inovação aplicado aos empreendimentos da indústria de defesa, e a
economia de segurança. Enquanto essas áreas não forem estabelecidas e
consolidadas, o Plano Nacional de Defesa – qualquer que seja ele – não terá o
lastro intelectual para sua auto-sustentação empreendedora, tornando-se,
apenas, mais um esforço que acaba em políticas vazias de possibilidades.
Quando será que vamos aprender que “criar no papel” é fácil, dá prestígio
momentâneo ao “pai da idéia”, mas que essas idéias fenecem se não forem
lastreadas em competências empreendedoras? Não há auto-suficiência em
defesa sem lastro intelectual e não há indústria de defesa auto-suficiente sem
capilaridade empreendedora apoiada em políticas públicas sustentáveis em
princípios de economia de segurança.
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