sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Estado Islâmico: inimigo ideal e ameaça etérea, por Fernando Brancoli

A simbologia de fanáticos religiosos vem servindo a propósitos múltiplos há gerações. A construção dos mais variados inimigos foi – e é – facilitada quando o adversário é posto como um ator irracional, movido por ideologias primitivas e não negociáveis. No caso específico da religião, os seguidores de determinada crença muitas vezes são postos como atores sem agência, movidos por dogmas conclusivos e imutáveis, seguidores automáticos de determinações vistas como sagradas.
O exemplo mais contemporâneo dessa situação é o chamado “Estado Islâmico” (EI ou ISIS, na sigla em inglês), – antigo ‘Estado Islâmico do Iraque e do Levante’. Estabelecido em 2004 durante a invasão norte-americana ao Iraque, o grupo fundamentalista sunita vem ganhando notoriedade desde 2013, quando expandiu sua atuação para a guerra civil da Síria. Enfrentando o governo de Bashar Al Assad, o EI vem ocupando militarmente espaços cada vez mais amplos, chegando, em julho de 2014, a anunciar a criação de um “Califado” envolvendo áreas da Síria e do Iraque. Usando armamentos norte-americanos, doados originalmente aos iraquianos, o grupo surpreendeu pela velocidade de expansão, ocupando, em agosto de 2014, uma área equivalente à Jordânia (VICE, 2014).
O aumento da influência do Estado Islâmico chamou atenção ainda pela brutal violência empregada pelos seus membros. Baseando suas ações em interpretações ortodoxas da lei islâmica, o grupo é acusado de ter assassinado centenas de civis, empregando, inclusive, métodos como crucificação e decapitação. Nos casos mais midiatizados, provocaram uma crise humanitária ao isolar no alto de uma cadeia de montanhas cerca de 40 mil pessoas da minoria étnica yazidi, o que provocou ataques aéreos por parte dos Estados Unidos. Recentemente, o grupo divulgou ainda a execução do jornalista norte-americano James Foley, que atuava na Síria.
A ênfase midiática se mostra uma das variáveis mais importantes ao se analisar o EI. Empregando maciçamente a internet, o grupo já lançou centenas de vídeos e textos propagandeando suas ações e conquistas. A maioria, filmado com câmeras relativamente modernas, de alta definição, são em inglês e contam com edição relativamente profissional. O EI usa ainda redes sociais, também em inglês, em que conclama novos afiliados e até mesmo responde perguntas de internautas.
A combinação desse discurso extremista, que acaba gerando expressões midiáticas globais, com o emprego amplo de ferramentas de divulgação, vem fazendo com que o EI, em certos momentos, se mostre maior do que realmente é. Apesar dos reais avanços em território iraquiano e sírio e da grave ameaça humanitária, o grupo ocupa atualmente cidades com pouca importância estratégica – principalmente pela contenção por parte dos Curdos, que impediram que os extremistas conquistassem efetivamente as áreas ricas em petróleo no Iraque. O Estado Islâmico, além disso, conta essencialmente com armas leves e tem poucas fontes de renda. Recentemente, empregou estratégias parecidas com a da máfia, como roubos a banco (Dreazean, 2014), para conseguir se manter ativo. O grupo não conta ainda com muitos integrantes e é dependente de conversões da população local.  A própria sustentação da entidade, com a reorganização do exército do Iraque, já é colocada a prova.
Contudo, essa ‘nova’ ameaça extremista tem sido empregada por uma série de países no entorno para reordenar suas estratégicas ou justificar certas ações. O Irã, por exemplo, aumentou seu contingente na fronteira com o Iraque, argumentando que a presença do EI poderia ameaçar a integridade do país. O acréscimo de tropas já vinha acontecendo desde a retirada das tropas norte-americanas em 2011, mas os acordos militares com Bagdá foram galvanizados desde a tomada da cidade de Mosul. Interessante notar que, de forma direta, nenhuma dessas movimentações iranianas efetivamente se concentrou nas áreas sob ameaça direta do ISIS. Em fala ao parlamento local em julho, o chanceler iraniano Mohammad Javad Zarif afirmou que o ISIS, pela sua natureza extremada e não passível de negociação, demandava uma resposta ampla e irrestrita do governo iraniano.
Outro exemplo do emprego do Estado Islâmico como justifica para ações não relacionadas está presente nos conflitos entre Israel e os Territórios Ocupados Palestinos. Apesar de não existir ligação alguma entre o EI e o Hamas, representantes de Tel Aviv tem estabelecido tal conexão, principalmente para explicar medidas mais duras contra os grupos palestinos. Essa fala tem se dado, principalmente, em duas narrativas complementares. Na primeira, o Hamas tem suas táticas comparadas ao E.I., argumentando que grupos islâmicos, por partirem de premissas semelhantes, teriam objetivos iguais, principalmente a destruição do Estado hebreu, por exemplo. O Hamas poderia se tornar um “novo Estado Islâmico”, caso Israel não promovesse medidas mais assertivas. A segunda narrativa aponta que os dois grupos teriam a mesma origem: a Irmandade Muçulmana. Não haveria, assim, diferença essencial entre o Hamas e o ISIS, ambos motivados por “idéias loucas fundamentalistas”, nas palavras de Tzachi Hanegbi, vice-chanceler de Israel. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, fez a mesma comparação, argumentando que o “Hamas, ISIS e Alqaeda são essencialmente a mesma coisa” (NBC News, 2014) O argumento da “mesma origem” faria com que os atores islâmicos contemporâneos fossem meras manifestações das indicações promovidas há quase cem anos, co0m o surgimento da Irmandade, sem espaço para articular quaisquer que sejam suas ações.
A narrativa homogeneizante é pouco sofisticada e desonesta intelectualmente, mas auxilia na construção de um ambiente em que o Estado israelense estaria cercado por fundamentalistas muçulmano. A não identificação das múltiplas interpretações sobre o islamismo é proposital, na medida em que cria um inimigo etéreo, sempre presente, com quem não se pode estabelecer diálogo algum. A tática não é nova, com a crítica seminal de Edward Said ao “Orientalismo” já tendo apontado suas causas e conseqüências há décadas.
Não há dúvidas de que o Estado Islâmico é um grupo brutal, formado por fanáticos que fazem uma interpretação muito específica da religião muçulmana, onde a convivência com indivíduos não islâmicos não é possível. As ameaças que tal grupo provoca na população dos espaços ocupados é real e devem ser lidadas de forma rápida e séria. Contudo, é necessário também se ater a movimentações discursivas que se apropriam da situação para justificar medidas não relacionadas, em discursos homogeneizantes simplistas e que demonizam uma população inteira. O ISIS, dentro dessa lógica, tem sido mais útil para certos governos do que efetivamente promovido ameaças sinceras.

Bibliografia

DREAZEN, Yochi. (2014) ISIS Uses Mafia Tactics to Fund Its Own Operations Without Help From Persian Gulf Donor. Foreign Policy.http://complex.foreignpolicy.com/posts/2014/06/16/isis_uses_mafia_tactics_to_fund_its_own_operations_without_help_from_persian_gulf_d. Acesso em agosto de 2014
NBC News (2014). Netanyahu: Hamas Is Islamist Extremism Like al Qaeda, ISIS. http://www.nbcnews.com/storyline/middle-east-unrest/netanyahu-hamas-islamist-extremism-al-qaeda-isis-n162076. Acesso em agosto de 2014
VICE (2014). The Islamic State. Documentário online. Disponível em https://news.vice.com/video/the-islamic-state-part-1
Professor de Relações Internacionais da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e da UniLasalle (fbrancoli@gmail.com) 

Fonte: Mundorama

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