Nos últimos meses, a discussão mundial sobre os serviços secretos deu lugar ao debate sobre “práticas adequadas” de inteligência e as reformas seletivas anunciadas pelo presidente Obama, que não lograram diminuir a perplexidade do resto do mundo. Morton Halperin, especialista estadunidense em política externa e direito civil, que atuou nos governos de Johnson, Nixon e Clinton, afirmou que “a falha em controlar adequadamente as agências de Inteligência pode ter consequências muito mais catastróficas para uma nação que a maior parte de outras falhas na política.” Deve-se, então, julgar o mérito das ações de um governo em grande parte pela política que as motiva e não pelos atos em si.
A atividade de inteligência é um instrumento de Estado responsável pelo acúmulo lento de informações produzido em dias, meses e anos. Intrinsecamente não é boa nem má, o que não pode ser dito da política que a motiva. Ao se valer do sigilo como ferramenta de ação, o Estado lança sobre a sociedade o temor de que a atividade de inteligência possa ser utilizada para a manutenção do poder.
A inteligência dos EUA apoia sistematicamente guerras contra-revolucionárias ou pró-insurgentes, dependendo de interesses político-estratégicos que, em sua maioria, permanecem em sigilo tanto para o povo, quanto para a mídia. Seu galope firme e silencioso é guiado pelo discurso da justa guerra contra o terrorismo, propagandeado como maior pesadelo da humanidade.
Internamente, o Centro de Inteligência Regional de Boston e o FBI, ambos órgãos federais, ocupados em rastrear movimentos populares, como “Occupy”, “Code Pink” e Veteranos pela Paz, ignoraram completamente a possibilidade de ataque dos irmãos Tsarnaev, que bombardearam a Maratona de Boston em abril do ano passado. Isto diz muito sobre as prioridades de seus programas de espionagem e vigilância doméstica. Em carta ao governo brasileiro, datada de 17 de dezembro passado, Edward Snowden declarou que tais programas pouco tratam de terrorismo e sim de espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. E complementou: eles atuam pelo poder.
A comunidade de inteligência militar estadunidense concentra-se agora em pressionar a China, a Rússia e a América Latina para forçar a sua cooperação na captura de Snowden, o “espião traidor”. Para isso não importa violar tratados internacionais. E o aparelho de inteligência militar vai se tornando cada vez mais poderoso e autônomo em relação aos seus governantes, incluindo o próprio presidente. O controle externo da atividade de inteligência (Câmara dos Representantes e Senado) ou foi ineficaz ou conivente, pois as ações da inteligência passaram a prejudicar acordos diplomáticos, relações bilaterais e até negócios do país no exterior.
Mas a inteligência é um mal em si? Clausewitz, general prussiano e teórico militar do século XIX, escreveu que “em toda guerra, a incerteza a respeito do inimigo é uma dificuldade destacada, já que as ações bélicas devem, em grande maioria, ser planejadas para um futuro imediato”. Ele relaciona essa imposição com o conceito de “economia de guerra”, que implica usar o mínimo de recursos sem prejudicar o alcance dos objetivos.
A inteligência é o método que possibilita a “economia de guerra”.
Os serviços secretos são tão necessários à nação moderna quanto seus exércitos. Não se trata, então, de condenar as agências dos EUA e, por tabela, do restante do mundo. Cabe lembrar que a própria legislação brasileira também prevê que o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) atue dentro e fora do território nacional, quando tratar de assuntos que interfiram de forma importante no processo decisório. Praticamente todas as nações fazem isso.
Qual seria, então, o limite entre a atividade de inteligência e o controle democrático? O filósofo e historiador Norberto Bobbio afirmou que se a sociedade não encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do “governo visível”, está perdida. Para Bobbio, “mais do que uma promessa não cumprida, estaríamos diante de uma tendência invertida: não ao máximo de controle do poder por parte dos cidadãos, mas o máximo controle dos súditos por parte do poder”.
Fica, assim, a grande questão: como controlar algo que por natureza deve permanecer escondido?
Gustavo Guerreiro
Mestre em Sociologia e pesquisador do Observatório das NacionalidadesFonte: Opovo
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