Um dos principais pensadores das relações internacionais defende os programas de espionagem e diz que, na era do terrorismo, um Estado tem de saber antes o que acontece
Rodrigo Turrer
Joseph S. Nye é reverenciado dos dois lados do espectro político americano. Professor de relações internacionais em Harvard e conselheiro para assuntos de segurança no governo Bill Clinton, Nye ficou famoso ao criar o conceito de "soft power" - o poder de influenciar pela inspiração. Em seu novo livro, Presidential leadership and the création of the American era (Liderança presidencial e a criação da era americana), Nye divide os presidentes americanos em transitórios e transformacionais. "Ser um presidente transitório não coloca seu rosto no dólar nem lhe garante uma estátua em Washington, mas pode ser mais importante que mudar para pior", afirma Nye nesta entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA - Em seu novo livro, o senhor diz que existem presidentes transitórios e presidentes transformacionais. Como explica esses conceitos?
Joseph S. Nye - Presidentes transformacionais são aqueles que tentam e conseguem fazer grandes mudanças. Presidentes transitórios buscam estabilidade, tentam manter o trem nos trilhos. O senso comum diz que os presidentes mais importantes são aqueles que conseguem fazer as grandes mudanças. Mostro no livro que isso não é necessariamente verdade. Olhando para os presidentes americanos no século XX, um transformacional não é necessariamente melhor que um transitório. Presidentes transformacionais, como Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), marcaram a história, mas presidentes transitórios, como George H.W. Bush, também. Ser um presidente transitório não coloca seu rosto no dólar nem lhe garante uma estátua em Washington, mas pode ser mais importante que mudar para pior.
ÉPOCA - O senhor tem exemplos?
Nye - O melhor exemplo vem da mesma família. George H.W. Bush, o pai, foi um presidente transitório. Assumiu o país num momento de virada - Ronald Reagan era um herói, mas os democratas estavam em ascensão. O primeiro Bush teve uma das melhores políticas externas americanas dos últimos 30 anos. Suas ações no âmbito internacional foram pontuais, e sua decisão de invadir o Iraque foi essencial para a ordem na comunidade internacional. Já George W Bush, o filho, foi transformacional. Suas decisões de invadir o Iraque e intervir no Oriente Médio ajudaram a arruinar a imagem dos Estados Unidos. Bush filho foi responsável pela pior política externa americana em cinco décadas. Eis um exemplo geneticamente próximo de como um presidente transitório pode ser melhor que um transformacional.
ÉPOCA - Obama será transformacional ou transitório?
Nye - É cedo para saber, ele ainda tem três anos para atingir seus objetivos. Obama começou falando como um presidente transformacional. Ele tem atitudes e ações de presidentes que querem fazer grandes mudanças. Mas, quando Obama está pressionado ou em perigo, ele se torna um presidente transitório. Ele adota a postura de um presidente que não quer perder o que conquistou. Isso não é uma coisa ruim, como o exemplo de Bush pai nos ensina.
ÉPOCA - Qual Obama o senhor prefere?
Nye - Gostaria de ver Obama atingir todos os objetivos de transformação que ele traçou para seus mandatos. Por exemplo, seu discurso em Praga, em 2009, sobre o combate à proliferação de armas nucleares, ou seu discurso no Cairo, sobre um recomeço com o mundo muçulmano. Mas ambas as aspirações de Obama provaram-se impossíveis de conquistar. Então, prefiro quando Obama atinge objetivos mais modestos e viáveis, como a reaproximação com o Irã ou a recuperação da economia americana.
ÉPOCA - A expectativa excessiva criada em torno de Obama atrapalhou seus mandatos?
Nye - Sim. Como o primeiro presidente afro-americano, as expectativas em relação a Obama eram muito elevadas. Sua campanha prometia mudanças históricas. Mas ele foi eleito num momento de grande polarização política nos Estados Unidos, e o sonho de tantas mudanças provou-se impossível. Ainda assim, ele conseguiu feitos importantes, como o assassinato de (Osama) Bin Laden, a aprovação dos programas de saúde, a reaproximação com o Irã.
ÉPOCA - A oposição ferrenha a Obama é um presságio do que futuros presidentes americanos enfrentarão dentro e fora dos Estados Unidos?
Nye - A Constituição americana tem uma série de impeditivos para evitar que o presidente exerça o poder de maneira excessiva. Há todos os freios e contrapesos, e o Congresso é forte.
Franklin Roosevelt, talvez o maior presidente da história americana, não atingiu seu maior objetivo em política externa -que era parar Hitler e intervir na Segunda Guerra Mundial antes. Isso por causa da quantidade de políticos defensores do isolacionismo americano nos anos 1930. Não é novidade que presidentes americanos tenham dificuldades para aprovar seus projetos porque são enquadrados pelo Congresso. Obama enfrenta mais dificuldades por causa da polarização em excesso dos dois partidos. Mas isso pode mudar. Até agora, Obama é um caso clássico de copo meio cheio e meio vazio - nem melhor nem pior que presidentes americanos comuns.
ÉPOCA - O senhor dedica um capítulo de seu livro às maneiras éticas de agir nas relações internacionais. Como é possível falar em ações éticas diante de situações como a guerra civil na Síria ou o genocídio em Ruanda?
Nye - Sempre temos de pensar em maneiras éticas de agir em relações internacionais. Quando dizemos que não temos escolha, estamos mentindo, sempre temos escolhas. Mesmo quando decidimos não agir, essa inação terá consequências éticas. A questão é como fazer as coisas da melhor maneira. Você pode dizer que a situação na Síria é terrível, milhões de pessoas refugiadas, milhares de mortos, uma tragédia sem fim. Por isso, devemos fazer algo a respeito. Mas não sabemos o que fazer a respeito. Se decidirmos intervir militarmente na Síria sem o apoio das Nações Unidas, poderemos envolver países como a Rússia e dar início a um conflito global. Seria melhor ou pior? Há decisões morais corretas que podem ter um resultado ruim e inações morais incorretas que terão um resultado melhor. Mas, como seres humanos, fazemos uma escolha.
ÉPOCA - A inação americana na Síria foi correta?
Nye - Sim. Na Líbia, por exemplo, Obama decidiu intervir. Mas ele usou a força apenas depois de ter certeza de que tinha o apoio das Nações Unidas e da Liga Árabe. Antes de usar seu poder militar, os americanos usaram seu "soft power", seu poder de influenciar a sociedade. Obama percebeu que, se os EUA usassem força contra a Líbia sem que isso fosse legitimado pela Liga Árabe e por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, criaria uma narrativa de que os EUA atacaram um país muçulmano pela terceira vez consecutiva. Com as resoluções, a narrativa foi "os Estados Unidos ajudaram a tirar um déspota do poder". Na Síria, isso era impossível, porque os árabes estão divididos sobre o país - e China e Rússia não apoiavam uma intervenção.
ÉPOCA - Em seu livro O futuro do poder, o senhor diz haver uma mudança ocorrendo, com o poder saindo de Estados para atores não estatais. O que isso quer dizer?
Nye - E o que chamo de difusão do poder. A revolução da informação dá poder a determinados grupos de indivíduos. E uma mudança do topo para baixo, dos ditadores e mandatários para a sociedade. Foi o que vimos na Tunísia, no Egito, na Primavera Árabe. Isso não significa que os governos já não sejam os atores mais poderosos, mas que o palco em que eles atuam está lotado. Hoje indivíduos podem fazer coisas que eram impensáveis antes. Quando Manning (Edward Manning, soldado dos EUA, hoje Chelsea Manning) tirou documentos do Pentágono e vazou para o WikiLeaks, não havia nada de novo naquilo. Já ocorrera centenas de vezes, como nos Documentos do Pentágono. A diferença é a escala com que isso passou a acontecer. Manning tirou quilos de documentos num CD da Lady Gaga.
ÉPOCA - O senhor é a favor da espionagem do Estado?
Nye - A vigilância do Estado é necessária. A questão é como controlá-la. Na era do terrorismo, um Estado tem de saber antes o que acontece. Basta dizer que dois seqüestradores do 11 de Setembro moravam nos Estados Unidos e faziam ligações para o Iêmen para falar de seus planos - e não foram rastreados porque havia restrições legais. Em 2010, o afegão Najibullah Zazi foi preso planejando colocar bombas numa estação de metrô em Nova York. A vigilância do Estado é necessária para a segurança da população. Mas é preciso fazer com que essa vigilância seja compatível com as liberdades civis, com a proteção à privacidade. Uma saída para isso seria uma participação maior de tribunais, ou de um comitê composto de juristas e advogados, para aprovar ações de espionagem. O grau de vigilância precisa ser recalibrado, mas sempre será necessário.
Fonte: Revista Época via resenha EB
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