segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

John Le Carré, o espião que se cansou do sistema

O escritor já foi espião e defensor da espionagem. Agora, tornou-se um crítico da elite política do século XXI, que manipula o serviço secreto

LUÍS ANTÔNIO GIRON
LONGEVO John Le Carré  em 2012. Aos 52 anos de carreira, ele lança Uma verdade delicada  (Foto: Effigie/Leemage/AFP)
O escritor britânico John Le Carré, de 82 anos, é mais que o guru do romance de espionagem, celebrado por criar tramas e personagens em estilo conciso. É também um investigador dos dilemas morais gerados pela política internacional. Usa a literatura popular para criar densos romances de tese. Nos últimos 50 anos, passou de observador cético das operações secretas de espionagem a crítico do sistema que usa agentes secretos para incrementar as relações promíscuas entre governos e empresas privadas. Essa irritação fica estridente em seu último e intrincado romance, o 23º de sua carreira, Uma verdade delicada (Record, 308 páginas, R$ 45), lançado em abril em inglês e agora no Brasil. O livro narra como um agente secreto britânico, Paul Anderson, é ludibriado por um ministro ligado a uma empresa americana que organiza tropas mercenárias. A guerra global ao terror dá oportunidade a empreendimentos lucrativos e ao que Le Carré denomina “privatização da guerra”. Em nome de interesses duvidosos, os clássicos ideais do espião se espatifam contra a realidade.
Le Carré tem credenciais para escrever sobre o assunto. Trabalhou, entre 1950 e 1963, para duas agências de espionagem britânicas: o MI5, serviço de segurança nacional, e o M16, serviço internacional de inteligência. Em ambas, grampeava telefones, interrogava comunistas e invadia a privacidade alheia – ação quase infantil comparada ao que se faz hoje. Ele um dia foi um jovem que sonhou em salvar o mundo servindo ao governo. “Nos velhos tempos, era conveniente me etiquetar como um espião que se tornou escritor. Nada disso. Sou um escritor que, muito jovem, dedicou à Inteligência Britânica poucos anos inúteis, mas extremamente ricos em formação”, diz.
Sua formação remonta à infância. Filho de um contraventor, Ronnie Corn­well, e de uma mulher que abandonou o lar quando Le Carré tinha 5 anos, teve de se virar para estudar. Com uma bolsa, estudou alemão na Suíça. Mais tarde, graduou-se em artes na Universidade de Oxford. No período, entrou para a Inteligência Britânica. Casou-se, em 1954, com Alison Sharp e teve três filhos. Em 1960, trabalhou como funcionário diplomático na Alemanha. À sombra do Muro de Berlim, que era erguido, escreveu dois livros de mistério e um de espionagem, O espião que saiu do frio, lançado em 1963 e agora relançado em edição de aniversário, com documentos e fotos (Record, 224 páginas, R$ 45). Com o sucesso do livro, demitiu-se do serviço secreto para viver da escrita. Mudou-se, em 1972, para uma propriedade íngreme na Cornualha, à beira-mar, onde mora com a segunda mulher, a editora Valerie Eustace. Escreve de manhã, depois faz caminhadas pelos arredores. Não participa da vida social literária.
 

DUAS PONTAS Entre o primeiro e o mais recente romance de espionagem  de Le Carré, o mundo e ele mudaram (Foto: Divulgação)
Desde o início, Le Carré denunciou a inconsistência moral dos métodos de espionagem aplicados pelos governos, tanto ocidentais como não ocidentais. Em O espião que saiu do frio, mostrou que os espiões não levavam a vida luxuosa de James Bond, herói de Ian Fleming. Alex Leamas, o rabugento agente de Le Carré no livro, é enviado a Berlim Oriental no ápice da Guerra Fria (1945-1991), com a missão de desmascarar um agente duplo. Ele sacrifica a vida pessoal aos caprichos e desmandos do governo. Alex e os espiões subsequentes de Le Carré, alguns baseados nele próprio, chamaram a atenção por ser apresentados como presas do Estado. Viraram personagens de filmes e fizeram a fortuna de seu criador.

A fama não suprimiu o olhar analítico. Se o mundo mudou em 50 anos com a queda do Muro de Berlim, em 1989 – e com o ataque às Torres Gê­meas, em 2001 –, a falta de escrúpulos só aumentou na espionagem. Le Carré passou a ambientar histórias num mundo multipolar, marcado por conflitos de todos contra todos. Sua literatura se encheu de nuances. Basta comparar personagens de dois tempos. Alex, de O espião que saiu do frio, não hesitava entre o dever e a moral. Acreditava que valia a pena lutar pela democracia. Paul Anderson, de Uma verdade delicada, é diferente. Ele é mandado por um ministro trabalhista, Fergis Quinn, à colônia de Gibraltar, para desbaratar uma conspiração islâmica. Paul descobre que tudo não passa de uma jogada de Quinn e seu sócio, dono de uma empresa que fornece mercenários, para desencadear uma guerra. Em tempos da privatização da guerra e de promiscuidade entre governos e corporações, o espião não tem ideais, só revolta e frustração. Com a ajuda do assistente de Quinn, Toby Bell (inspirado no Le Carré jovem e idealista), Paul planeja desmascarar o real vilão: o ministro.

Le Carré fez de seu despenhadeiro na Cornualha um refúgio e um palanque. Sobre as revelações de Edward Snowden (o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança americana que delatou a bisbilhotice geral e depois se refugiou na Rússia), afirma: “Os americanos não têm limites para violar a liberdade que conquistaram tão arduamente”. Ele acha, no entanto, que Snowden deve ser julgado. “Nenhum país pode permitir que servidores secretos abram o bico impunemente.” Le Carré tem atacado a submissão dos britânicos aos americanos. Afirma estar desapontado com Barack Obama por não cumprir a promessa de desativar a prisão de Guantânamo. Para ele, a espionagem deveria virar atividade diplomática. “Se a gente gastasse parte do que gastamos na guerra em descobrir os mal-entendidos que os outros alimentam sobre nós, faríamos um trabalho melhor.” Le Carré pode estar enfastiado da espionagem real. Mas se diz satisfeito por ter elevado o gênero espionagem a um patamar mais elevado de arte. 

Fonte: Epoca

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