César
Maurício Batista da Silva*
Defenestrado
por se referir aos parlamentares que investigam as denúncias de corrupção no
governo Lula como “bestas feras”, o ex-chefe da Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN) acertou no que não viu. Sem saber, jogou luz sobre a
história do órgão a que serviu, sublinhando a pertinência de uma obra recém
lançada, “Ministério do Silêncio” ajuda a compreender que o episódio, longe de
representar um ato isolado, petulante e inconseqüente – note-se que a
declaração do ex-araponga-rei foi feita através de comunicado disponível na
“intranet” do órgão –, é mais uma amostra, ainda que mínima, da autonomia
institucional e funcional que sempre marcaram o serviço secreto brasileiro.
Ao
mesmo tempo em que sistematiza a bibliografia sobre o tema, o jornalista do Estado
de Minas nos proporciona contato com documentos e espaços da
organização institucional brasileira até então nebulosos à vista pública. Com a
leitura sabe-se, por exemplo, da existência do Centro de Informações do
Exterior (CIEX), serviço secreto do Ministério das Relações Exteriores, em
algumas oportunidades confundido com o serviço secreto do Exército (CIE).
Segundo Lucas Figueiredo, sua composição exclusivamente civil, com diplomatas
de carreira formando seu corpo de agentes, permitiu que passasse desapercebido por
historiadores do regime militar. O autor se refere a pelo menos uma missão do
CIEX, em meados dos anos de 1970 (acompanhou os passos no exterior do
ex-assessor sindical de João Goulart, José Gomes Talarico), comprovada através
de uma das peças que compõem a farta documentação que sustenta a obra. O CIEX
ainda vigiou no exterior exilados como Brizola e o próprio Jango.
Mas
reputo que sejam outros dois momentos os mais instigantes da obra. Primeiro, a
pré-história. É detalhada a informação de que, se o Serviço (forma
sucinta pela qual o autor designa o serviço secreto) foi parido Serviço
Nacional de Informações (SNI), por Golbery do Couto e Silva, foi gestado desde
o governo Washington Luís, no Conselho de Defesa Nacional. Instituído em
novembro de 1927, o Conselho não contava com espiões. Não ia muito além de uma
grande mesa-redonda onde ministros de Estado trocavam e analisavam informações
que já possuíam. Malgrado sua inoperância frente ao objetivo de municiar o
Presidente da República com informações, já ali se configurava uma das
características que nunca mais abandonariam o Serviço: regulamentação vaga, ampla e evasiva, perfeita
para que se pudesse fazer o que se quisesse contra quem se desejasse.
Vargas
amplia a estrutura com a criação das chamadas Seções de Defesa Nacional,
escritórios dentro dos ministérios civis. Mas também improvisa. Na falta de um
serviço secreto formal, lança mão da Polícia do Distrito Federal e do
Ministério da Guerra como serviços secretos clandestinos. Dutra cria
oficialmente o primeiro serviço secreto brasileiro em julho de 1946, o Serviço
Federal de Informações e Contra-Informação, cuja sigla tem pronúncia próxima a
um espirro: Sfici. O órgão é criado a reboque da valorização do papel dos
serviços secretos nos países centrais no contexto da incipiente Guerra Fria. A
“ameaça vermelha” nunca seria esquecida pelo Serviço, não apenas como trauma, mas também como
justificativa da própria existência. Se não havia agentes externos dessa
ameaça, que fossem eleitos alvos dentro das fronteiras. Ainda que só viesse a
ser montado efetivamente em 1956, por determinação de Juscelino, o Sfici também
já trazia na pele outras duas marcas indeléveis: a subordinação aos militares
(ficou ligado ao Conselho de Segurança Nacional, novo nome do antigo Conselho
de Defesa Nacional); e o combate aos “inimigos internos”. O ano de 1961
representa um marco nessa história. É quando Golbery ingressa nas fileiras do
Sfici. E também representa o início do período mais explorado pela literatura.
O
segundo destaque do “Ministério do Silêncio” é a história contemporânea do Serviço. No momento de retorno dos civis ao comando do
Executivo e com as expectativas da opinião pública apontadas para a construção
de um Estado democrático, o SNI muda a maquiagem, mas não de personalidade.
Procura parecer mais transparente, cultivando uma imagem institucional mais
positiva. Seu chefe passa a conceder entrevistas regulares, algo inconcebível
anteriormente, e, segundo o autor, “planta” notícias na imprensa a respeito de
supostas operações. Mas continua promovendo ações clandestinas, escutas
telefônicas ilegais, combatendo prioritariamente um “inimigo interno”,
manifestações políticas e culturais consideradas “de esquerda”, classificadas
como “perigo para a sociedade”. Além disso, a falta de um controle externo lhe
garantia impunidade e autonomia de ação. Nas palavras do autor: “Sob Sarney, O
SNI teve uma transformação bizarra: em vez de diminuir de tamanho (como seria
lógico) e de ser desmilitarizado (como mandava a prudência), passou a ter ainda
mais atribuições, ampliando sua agenda.” (p. 378).
Por
conta de desavenças durante a campanha eleitoral de 1989, Fernando Collor
extingue o SNI no mesmo dia em que toma posse: 15 de março de 1990. Sem definir
novas diretrizes institucionais, Collor cria o Departamento de Inteligência
(DI). Relegado a um simples departamento, não mais ligado diretamente à
Presidência da República, o Serviço também
perdeu a coordenação da “comunidade de informações”, desmanchada com o fim dos
laços formais entre ele e os serviços secretos da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica. Esvaziado institucionalmente e financeiramente - sofreu grave
enxugamento de pessoal e cortes de recursos –, pela primeira vez seria dirigido
por civis. Porém, o Serviço mostraria
que enverga, mas não quebra. Sobrevivente da “Constituição Cidadã” de 1988, um
serviço secreto tão viciado não havia de ser desmontado com uma canetada,
apenas. A definição de atribuições fluida e a falta de controles externos
permaneciam alimentando o seu sentimento de autonomia. A partir do governo de
Itamar Franco, nova inflexão. Nesse período se dá a remilitarização do órgão,
que volta a ganhar espaço. Após longa resistência, rende-se às novas regras de
contratação do serviço público em vigor desde 1988 e promove, em 1994, o
primeiro concurso público para o serviço secreto.
Sob
o governo do ex-exilado Fernando Henrique Cardoso, o Serviço ganha
novo fôlego. Em novembro de 1999 o Parlamento aprova o projeto do governo que
cria a ABIN. Ela, porém, não vinha sozinha. Foi criado, também, o Sisbin
(Sistema Brasileiro de Inteligência) que, sob coordenação da ABIN, abarcava
diversos órgãos da administração pública federal e, caso se fizesse necessário,
também estaduais. Renascia, incrementada, a “comunidade de informações”. “(...)
enquanto a velha comunidade reunia
algumas dezenas de organismos, a nova abrigaria centenas. Com uma só tacada, a
ABIN colocava no bolso informações da Receita Federal, da Polícia Federal, dos
Correios, da Anatel, da Previdência Social, do Incra, do Detran, do Banco
Central, etc. Era como se o Serviço estivesse
absorvendo o Estado novamente.” (p. 495). Não obstante isto, a criação da ABIN
foi comemorada por incluir a previsão de uma comissão do Congresso responsável
pelo seu controle externo. O tempo mostrou, e Lucas Figueiredo nos lembra
disso, que era vão o regozijo. Até pelo menos março de 2005 – já na segunda
metade do governo Lula – essa comissão não sairia do papel.
Entre
as contribuições de uma sistematização da história do Serviço acompanhada
da divulgação de material de pesquisa e investigação inédito, destaca-se a
retomada de informações oportunamente tornadas públicas, agora compreendidas
como parte de processos mais amplos. À guisa de exemplo, temos as já sabidas
mudanças nos prazos de divulgação de documentos oficiais empreendidas por FHC,
amplamente divulgadas na época. No apagar das luzes do seu governo – na sua
última semana –, o presidente-sociólogo baixa um decreto dilatando os prazos de
restrição ao acesso público a documentos sigilosos produzidos pela “comunidade
de informações”. “Assim, os documentos sobre o golpe militar classificados como
secretos deixariam de ser liberados à consulta pública em 2004, ficando
indisponíveis até 2024. No caso dos ultra-secretos, esse prazo pôde ser
esticado até o fim dos tempos.” (p. 517). A prorrogação do prazo de sigilo de
documentos classificados como ultra-secretos, até então permitida uma única
vez, passou a ser possível ad infinitum.
A contextualização oferecida por “Ministério do Silêncio” nos permite entender
essa informação como parte de um processo de retomada da força do Serviço
iniciado com Itamar e incrementado por FHC.
E
como seria a relação entre o antigo inimigo, Lula, agora Presidente, e o Serviço, que muitas vezes fez as vezes de “guarda
pretoriana” do chefe do Executivo? A resposta do autor é direta: “O PT
desconsiderou tudo aquilo que pregara para o órgão durante décadas e seguiu a
cartilha dos militares.” (p. 526). Também nessa ceara as tais “bandeiras
históricas” soam como parolagem estratégica. Ou cheiram a engodo mesmo. Lula
manteve a militarização do órgão, desistiu de acabar com sua atuação no campo
interno e, em um primeiro momento, manteve agentes oriundos do antigo SNI na
direção executiva da ABIN. Como se não bastasse, propôs, ainda no primeiro ano
de sua gestão, a dilatação dos poderes da Agência, encampando uma antiga
proposta do “monstro” de Golbery: legalizar a utilização de grampos e escutas por
parte do Serviço.
Quanto ao decreto de FHC a respeito dos prazos de divulgação dos documentos da
“comunidade de informações”, Lula, que poderia simplesmente revogá-lo, ou
orientar sua bancada a apoiar um projeto de lei que já tramitava no Congresso,
de autoria da deputada Alice Portugal (PCdoB) que dele daria cabo, preferiu a
inércia. Apenas a repercussão da infeliz nota do Exército que, em resposta à
retomada do caso Vladmir Herzog, acusou a imprensa de “revanchismo” e exaltou a
repressão militar contra os “subversivos”, fez o Presidente mover-se. Voltou
aos prazos anteriores, mas manteve a esdrúxula possibilidade de manutenção do
veto ao acesso público eternamente, para alguns documentos.
Além
de propiciar um completo panorama histórico do Serviço, “Ministério do Silêncio” mostra de perto o seu
papel em episódios como o da bomba do Riocentro, dos grampos do BNDES (onde
ficou patente o envolvimento do governo FHC com consórcio concorrente às
privatizações) e até mesmo no recente caso Waldomiro Diniz, mostrando a
contribuição, para o caso, do racha interno entre os funcionários da própria
ABIN. Primeira peça do dominó de escândalos do governo Lula a cair, este caso
motivou o depoimento de um agente da ABIN acusado de envolvimento, e que
ensejou a malfadada manifestação do ex-chefe recém-demitido.
Lucas
Figueiredo nos mostra que, passados 78 anos, as marcas do Serviço não
foram maculadas: militarização, ausência de controle externo, regulamentação
fluida e evasiva de suas competências, eleição do campo interno – movimentos
sociais, culturais e populares – como alvos, inimigos a serem combatidos. Mais
ainda: que, se essas marcas foram tatuadas na pele da nossa História
primordialmente durante o regime militar inaugurado em 1964, seus mais recentes
incrementos se deram em governos civis, o último dos quais, governo petista.
“Ministério do Silêncio” nos remete à instigante tese de Jorge Zaverucha,
mostrando que ela mantém sua atualidade. Isso nos faz questionar se a transição
do híbrido regime que tipificou os anos 1980 para o atual nos conduziu a um
Estado realmente caracterizado pelo controle civil democrático. Seja como for,
as sombras, tão caras ao Serviço,
ainda assustam, mas são hoje menos discretas.
* O autor é mestrando de Ciência Política
do PPGCP/IFCS.
Fonte: Achegas
Gente , nesse curso existe a possibilidade de atuar na área de comércio ? ou ele é restrito as questões de defesa e as ambientais ?
ResponderExcluirExiste Pós graduação pra esse curso na área de comércio ?