A evolução dos estudos sobre a paz ou sobre a guerra, embora, tenha origem correlacionada em momentos conflitivos primordiais, quando se iniciou a busca por compreensão e ação estratégica, ao longo do tempo, acabou por gerar uma fratura, de maneira que o pêndulo preponderou para a consolidação de uma lógica racional e natural do conflito.
Com o desenvolvimento técnico da guerra total, o surgimento da ameaça nuclear e a valorização do direito internacional no século XX, como meio institucional de securitização e dessecuritização nas relações internacionais, os estudos sobre a paz e a guerra voltam a dialogar, baseando-se na consolidação de instituições nas relações internacionais.
Conforme Samaddar (2004), por mais que as visões internacionalistas e geopolíticas do conflito predominem sobre as noções cooperativas, o desenvolvimento de uma comunidade epistêmica pacifista em meados do século XX passou a manifestar a transformação da paz em um artefato possível de materialização, ao projetar o repensar das forças cognitiva eestratégica.
Em primeiro lugar, a apreensão de diferentes campos de poder na relação existente entre os segmentos políticos, militares e de distintos segmentos da sociedade civil tem sido uma relevante força cognitiva dos estudos estratégicos de paz, ao fornecer um crítico quadro analítico, baseado em atores e em suas relações, capaz de identificar os problemas e possibilidades de construção de uma sociedade pacífica.
Mesmo tomando como referência a explicação nacional-realista sobre o fenômeno da guerra, os estudos estratégicos sobre a paz fazem uma releitura radical da trindade de Clausewitz, composta por políticos, militares e a população, com o objetivo de explicar não a guerra, mas antes os possíveis padrões de governança nacional para a construção da paz segundo padrões de estabilidade ou instabilidade derivados do relacionamento entre três atores.
Destarte, o triângulo clausewitzano permite identificar a governança nacional como sendo o resultado de uma articulação horizontal e vertical de relacionamentos entre diferentes atores, o que resulta na construção de diversos cenários de estabilidade ou de instabilidade, não necessariamente restritos aos estados de guerra (warfare), conduzidos pela caixa preta de policymaking.
Por meio deste arcabouço analítico da trindade da governança nacional, marcado lato sensupor relações cívico-militares, oriunda de uma ampla triangulação de atores que se interagem e produzem transbordamentos positivos e negativos, é possível visualizar a consolidação de contextos sociais de maior ou menor estabilidade, os quais podem ser eventualmente orientados por uma liderança pacifista com desdobramentos internacionais.
Em segundo lugar, a passagem de um paradigma conflitivo permeado pela noção potencial da guerra para um paradigma de paz, não se faz apenas pela transformação cognitiva, mas antes precisa se materializar por uma força estratégica, motivo pelo qual torna-se necessário um estágio intermediário compreendido pelo conceito estratégico de Defesa Não Ofensiva (NOD).
Segundo Buzan (1994), os princípios estratégicos da defesa não ofensiva estão baseados nas matrizes dos estudos estratégicos e dos estudos de paz que surgiram a partir das décadas de 1970 e 1980, justamente findando transformar a dinâmica internacional, por dentro da transformação na noção conflitiva.
De um lado, dos estudos estratégicos existe a adoção dos princípios estratégicos de que a política de defesa é necessária, sendo os meios militares aceitáveis, porém sob um enfoque minimalista e com emprego restrito à defesa do território.
De outro lado, dos estudos sobre a paz há a incorporação critica sobre a alta sensibilidade ao dilema de segurança, o que estimularia em muitos países o interesse para romper o círculo vicioso que surge quando as medidas defensivas representam uma ameaça a outro Estado.
A adoção estratégica dos princípios de defesa não ofensiva tem relevância para a passagem a um paradigma de paz, uma vez que é um instrumental pragmático e eficiente que mantém a noção de capacidade militar, porém transformada pela distinção entre o que são armas defensivas e ofensivas a fim de se evitar corridas armamentistas.
Por mais que existam criticas à noção de defesa não ofensiva, devida a distinção pouco realista entre armas defensivas e ofensivas, por mais que haja um desenho de força distinto, já que muitos equipamentos militares têm hoje capacidade de uso multioperacional, a relevância do instrumental se baseia na concepção de materialização pragmática.
A natureza pragmática vai muito alem de limitar a segurança militar a aspectos de defesa ou de diplomacia militar dissuasiva, senão que reside em conceder importância estratégica para a construção de medidas de controle de armamentos, medidas de confiança e de seguridade militar, bem como de organizações regionais de segurança.
Referências bibliográficasBUZAN, B. (1994). “Does NOD have a future in the post-Cold World War”. In MOLLER, B. & WIBERG, H. Non-offensive defence for the twenty-first century. Westview Press, 1994.SAMADDAR, R. (2004). Peace studies: an introduction to the concept, scope, and themes. London: Sage Publications.Elói Martins Senhoras é economista e cientista político, especialista, mestre e doutor. Pós doutorando em ciências jurídicas. Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR (eloisenhoras@gmail.com).
Fonte: Mundorama
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