
O presente artigo pretende debater, no escopo das teorias das Relações Internacionais, os impactos das mudanças climáticas e as maneiras pelas quais estas afetam Estados e populações, gerando, entre outras consequências, mudanças nos fluxos migratórios mundiais. Com estas mudanças nos fluxos migratórios surge a necessidade de se debater a fundo a definição de conceitos como refugiados, refugiados ambientais e migrantes, de forma a esclarecer e permitir um melhor debate a respeito da segurança dos Estados e como estes se posicionam frente a novas realidades mundiais.
Ligia Zambone Moreira (ligia.moreiraz@gmail.com) é Graduanda em Relações Internacionais pela Pontíficia Universidade Católica (PUC-SP) e em História pela Universidade de São Paulo (USP). Jéssica Castro (jessica.castilho.castro@gmail.com) é Graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP.
A temática ambiental e as relações internacionais
A discussão da temática ambiental dentro do espectro das relações internacionais pode ser considerada oficialmente iniciada no começo do século XX, época dos primeiros acordos entre países remetendo ao tema, como a Convenção para preservação de Animais (1900), Pássaros e Peixes da África, da qual Alemanha, Congo Belga, França Inglaterra e Portugal foram signatários, ou a Convenção para a Proteção dos Pássaros Úteis à Agricultura, firmado por 12 países europeus em 1902 e que procurava proteger desde a caça indiscriminada às espécies de pássaros que contribuíam comprovadamente para práticas agrícolas, transportando sementes.
Embora os primeiros acordos e reuniões internacionais de debate sobre o meio ambiente dificilmente alcançassem resultados objetivamente mensuráveis de forma positiva, os acordos de restrição à intervenção antrópica no meio ambiente não foram colocados em prática. Na época da Guerra Fria, encontramos um dos primeiros casos de tratado que teve suas medidas cumpridas e evitou a destruição de um ecossistema: o Tratado Antártico de 1959. O fato de as duas superpotências da época, URSS e Estados Unidos, serem signatárias e procurarem colocar os termos do acordo em prática, foi determinante para seu sucesso, independentemente das razões que elas apresentassem ou de fato possuíssem para essa determinada postura de política externa.
A partir desse período houve uma ascensão da importância da temática ambiental na agenda internacional, acompanhada por marcos na comunidade internacional como a atuação pioneira da Food and Agricultural Organization (FAO) e da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) dentro da Organização das Nações Unidas (ONU) no estímulo de atividades, órgãos e discussões relacionadas ao meio ambiente, como a Conferência da Biosfera (1968), a Conferência das Nações Unidas para a Conservação e Utilização de Recursos (1949) e a Conferência de Estocolmo (1972). A criação do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – 1972) foi outro marco essencial internacionalmente para as questões ambientais.
Entretanto, mesmo com todas essas iniciativas, nenhuma das pautas colocadas até então indicava riscos do grau e escala que estudos ambientais colocaram nos anos 1980 e 1990. Os temas discutidos afetavam a vida humana de forma direta e cotidiana, mas o faziam de forma menos global e grave. Todos os tratados e ações definidos até então, bem sucedidos ou não, como esperado, respeitaram os princípios de soberania e auto determinação de cada país e impediam qualquer ação de fiscalização e sanção mais intensa exercida supranacionalmente, mais do que isso, nos textos das convenções houve afirmações de que salvaguardariam a manutenção dos interesses nacionais dos países signatários. Nenhum desses tratados levou a um choque direto de interesses entre os Estados com maior capacidade na ordem internacional e, se seus interesses não fossem comtemplados pelos tratados, eles simplesmente se recusavam a assinar e participar das ações de mitigação aos problemas comprovados na relação ser humano – meio ambiente.
Nas relações internacionais existem três principais vertentes teóricas para o estudo acadêmico do meio ambiente: a liberal institucionalista, a marxista ou gramsciana e a da Escola de Copenhague. Muitos acadêmicos focam suas pesquisas na aplicação dos conceitos de regime [O conceito de “regime” pode ser definido como um quadro de regras, expectativas e prescrições existentes entre atores das Relações Internacionais. Este quadro tem como base o reconhecimento de uma sensação comum, de que o estabelecimento de relações de cooperação - que tem como base o princípio da reciprocidade - é necessário. Ressalta-se a importância da interdependência para a análise do regime, uma vez que unidades interdependentes precisam de cooperação e coordenação de políticas para produzir resultados positivos. Essa interdependência fica clara no âmbito das questões ambientais, uma vez que políticas coletivas e de cooperação podem produzir resultados positivos aos países que não seriam alcançados por meio de atuações individuais.] aos casos relacionados ao meio ambiente, concretizando uma visão mais liberal institucionalista, em que um fator motivador central da cooperação internacional seria os ganhos conjuntos resultantes desse processo, providenciando bens públicos de qualidade como uma atmosfera limpa. Essa concepção pressupõe que o maior problema a ser solucionado é como atingir uma governança efetiva para as questões ambientais em um sistema fundamentado na soberania. Outra vertente importante para a questão é a Marxista ou Gramsciana que posicionariam o Estado como parte dos problemas ambientais, de maneira que a crise ecológica global que enfrentamos atualmente seria devido a forma como o capitalismo reproduz relações que estão devastando o meio ambiente e os estudos seriam centrados nesses problemas. Ainda para essa visão, o Estado apenas legitimaria a presente situação, oferecendo uma amenização dos efeitos de destruição provocados pelo capitalismo global no meio ambiente. Por outro lado, uma terceira vertente importante das discussões é a da securitização [O conceito de “segurança” é visto, pela maioria dos autores como um conceito contestável, uma vez que existem divergências qual deveria ser o principal foco de reflexão da segurança: se sobre o indivíduo, se sobre o âmbito nacional, internacional, ou da segurança global. Contudo, existe o consenso de que este termo se refere à liberdade de ameaças aos valores centrais (para indivíduos e grupos). Autores como Buzan discutem até que ponto a segurança nacional e internacional são compatíveis e se Estados, visto a característica do sistema internacional, podem pensar em termos de uma cooperação internacional. A questão ambiental ressalta neste ponto da segurança global, a importância de que este conceito de segurança seja, cada vez mais visto, como parte, a ser pensada, da agenda de governança global.], que conecta as mudanças no meio ambiente com a possibilidade de potenciais futuros conflitos, sejam internos ou interestatais. Dessa maneira os desafios de mudanças ambientais seriam questões de segurança para os Estados, de ameaças de violência coletiva e ataques sobre a estrutura estatal. Essa terceira vertente tem englobado questões como os refugiados do clima e conflitos devido às mudanças climáticas.
As mudanças climáticas
A questão específica das mudanças climáticas tem um perfil bem diferenciado da maioria dos pontos discutidos até a década de 1980 sobre a temática ambiental. A dimensão planetária das mudanças climáticas torna a questão uma preocupação e problema comuns a todos os países do globo, colocando para a comunidade internacional um problema ambiental de uma escala jamais enfrentada, o que envolveria necessariamente grandes esforços de governança por parte dos países e, consequentemente, de cooperação internacional. As mudanças do clima afetariam praticamente todas as dimensões das relações internacionais, tornando impossível encarar o problema sem choques diretos entre interesses de grandes potências da ordem mundial.
Outro ponto é que as mudanças climáticas não podem mais ser apontadas como um problema incerto, ou que os estudos científicos existentes apontam dados insuficientes para estimular a ação por parte dos governos e instituições internacionais referentes às condições ambientais. Mesmo que duas vertentes de explicação sobre as causas das alterações climáticas tenham surgido, uma que enfatiza a ação antrópica e a outra que afirma que essas mudanças podem estar relacionadas a dinâmicas naturais do planeta Terra, essas alterações são comprovadas. Existe suficiente consenso internacional para estimular a tomada de ações no sentido de mitigar problemas relacionados às mudanças climáticas desde o final dos anos 1980, sendo que este panorama de consenso afirmando-se com maior intensidade ao longo dos anos. Em fevereiro de 2007, a publicação do Forth Assessment Report, pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) sepultou qualquer dúvida em relação a concretude das mudanças climáticas, ao afirmar que:
o aquecimento do sistema climático é inequivoco e agora evidenciado pelas observações do aumento da temperatura média global e dos oceanos, pelo derretimento de gelo e da neve, levando ao aumento do nível do mar e que acontece de maneira irrestrita. [Texto original : “Warming of the climate system is unequivocal, as it is now evidente from observations of the increases in global average air and ocean temperatures, widespread melting of snow and ice and rising global sea level” (Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC 2007, p 4)](Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC 2007, p 4).
Finalmente, é preciso destacar a diferença de capacidade dos países para lidar com um problema mais complexo, global e desafiador que os anteriores. Comparando as mudanças climáticas com o controle de emissão de Clorofluorcarbonetos CFCs exigido no Protocolo de Montreal, podemos verificar que, enquanto no segundo, os esforços das partes eram no sentido de controlar apenas um conjunto de gases industriais para os quais já haviam substitutos, no primeiro caso, reduzir as emissões de gases que intensificam o efeito estufa envolveria modificar os pilares fundamentais da vida nas sociedades modernas – energia, transporte, indústria e agricultura. Ou seja, a primeira situação envolve proporcionalmente um esforço muito maior de cada Estado para mitigar o problema do que a segunda.
A situação das clivagens políticas atuais relacionadas às mudanças climáticas é uma oposição entre, de um lado, um campo reformista formado por União Europeia, Japão, Coréia do Sul e México e, de outro, um campo conservador formado por Estados Unidos, Canadá, China Índia, Rússia, Indonésia e Arábia Saudita. Ainda existem países que possuem posicionamentos ambíguos quanto à questão, como Brasil e África do Sul que embora se posicionem a favor da redução de emissões de carbono – uma atitude marcadamente reformista –, mantém alianças com China e Índia (formando o chamado BASIC) e sua associação ao G-77 [O G-77 é uma organização intergovernamental criada na primeira seção da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD - 1964) que conta com a setenta e sete signatários, e que tem como objetivo prover meios para que países em desenvolvimento do hemisfério Sul, consigam articular e promover sua economia coletiva, aumentando a capacidade de negociação no âmbito econômico internacional e de questões relativas à economia no âmbito do sistema das Nações Unidas, promovendo, por fim, uma cooperação Sul-Sul na busca de desenvolvimento.].
Essas diferenças de posicionamento surpreendem e mostram uma separação que é muito diferente da típica imagem de dicotomia entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos. Elas revelam que o posicionamento dos países continua em concordância com os interesses nacionais de cada um. Embora tenha ocorrido um grande avanço na institucionalização de órgãos que cuidam da questão ambiental e uma melhora no alcance dos tratados e na sua inclusividade, a lógica de soberania – portanto da não intervenção externa – e da disputa pelos interesses econômicos que melhor beneficiariam o Estado, permanecem na hora de definir a política externa nessa questão. As diferentes posições também refletem a forma como as mudanças no sistema climático afetam de forma diferente cada Estado, prejudicando assim mais uns que outros, e as diferenças de capacidades política e financeira de lidar com as adaptações necessárias para mitigar as alterações climáticas.
Um ponto a ser notado é que as mudanças climáticas, além de afetarem os Estados, afetam também – e de forma incisiva – os indivíduos dentro desses Estados. Existe a impressão de continuidade na maneira como são traçadas as relações entre Estados em relação à questão das mudanças climáticas. E embora as bases sob as quais eles definem seus posicionamentos tenham se mantido ao longo do Século XX até agora, um número cada vez maior de pessoas tem sido forçada a migrar como resultado do impacto das mudanças climáticas em suas vidas, de uma forma que se sentem suas vidas ameaçadas pelas condições do ambiente. Esses fluxos migratórios de refugiados ambientais têm gerado debate intenso nas organizações internacionais e nos próprios Estados, pois esse número cada vez maior de pessoas em movimento é encarado como uma questão de segurança.
Refugiados, Internally Displaced Persons (IDPs), migrantes: a diferença entre iguais
Quando se aborda o tema da segurança dos Estados, um dos assuntos que salta aos olhos, devido ao seu impacto sobre as estruturas estatais, é a questão dos refugiados. A prática de dar asilo a pessoas perseguidas em terras estrangeiras não é nova. A criação da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, veio para firmar, dentro do campo das Relações Internacionais, a importância de se discutir a problemática dessa população. Movimentando-se por entre os Estados, nos mais diversos sentidos no globo, e alocando-se em regiões que apresentam traços e características distintas da sua região de origem, os refugiados enfrentam dificuldades como a adaptação cultural e étnica e a relação dos Estados com essa população, que como cidadãos passam a se utilizar dos recursos por ele oferecidos.
O fim da Guerra Fria estabelece uma mudança de paradigmas das Relações Internacionais, ao mudar o foco das discussões a respeito de segurança estatal de uma perspectiva mais centrada no Estado, para uma perspectiva com as relações transnacionais e mais voltadas aos indivíduos. Desde essa mudança de foco, a segurança internacional passou a se basear mais na consolidação da dignidade humana. Neste contexto, o conceito de segurança humana assume sete diferentes facetas [A origem do conceito de segurança pode ser traçada até a publicação do Relatório de Desenvolvimento Humano em 1994 - estabelecido pelo United Nations Development Programme (UNDP, 1994) - que define a segurança humana dentro do escopo destas sete facetas.]: segurança econômica, segurança alimentar, segurança de condições de saúde, segurança ambiental, segurança individual, segurança comunitária e política.
Contudo, o período pós-Guerras apresenta a atmosfera do aumento expressivo dos deslocamentos humanos, e em reflexo a essa nova situação e aos novos debates que esta gera na situação internacional, a preocupação dos Estados em relação aos refugiados se amplia e, com ela, a necessidade de que eles criem novas propostas organizacionais e de regulamentação estatal frente à condição desta movimentação populacional mundial.
A Convenção de Genebra realizada em 1951 estabelece um marco na proteção e na discussão a respeito da situação dos refugiados, estabelecendo, já em seu primeiro artigo, a definição de refugiado como sendo todo indivíduo que deixa seu país de origem
[...]pelo medo de ser perseguido por razões de raça, religião, nacionalidade, participação de um grupo social e político e que por falta de proteção de seu Estado original, não tem condições e desejo de retornar para ele. (UN General Assembly, 1951, p.18).
Ao estabelecer a definição de refugiados, a lei internacional passa a pensar também em quais direitos e responsabilidades que os dois lados da moeda do jogo internacional – neste caso, refugiados e Estados – assumem como responsabilidades. Por parte do Estado, é importante ressaltar que a Convenção não obriga os países a concederem asilo indistintamente, podendo negar proteção a indivíduos que cometeram crimes contra a humanidade e a paz e crimes de guerra. Contudo, os Estados ficam proibidos de enviar de volta ao seu país de origem, ou qualquer outro país, um refugiado que se sinta ameaçado. Este princípio do non-refoulement [Princípio que garante que os Estados são proibidos de mandar para outras regiões, refugiados que ainda se sintam em situação de risco.] é complementado pelo princípio da voluntary repatriation, uma das soluções mais desejadas no caso dos refugiados e que presa pela volta voluntária do refugiado à sua região natal. Já para os refugiados, fica estabelecido o direito de ter acesso à riqueza, com garantias, por parte dos Estados, do acesso a direitos econômicos e sociais, tendo os refugiados a obrigação de viver segundo as leis do país que o hospeda.
Na segunda seção do primeiro artigo da Convenção, garante-se ainda a proteção a refugiados sem Estados, ou stateless refugees[Pessoas que não são consideradas por nenhum país como cidadãs por meio do conjunto de leis e regras dos países, sendo importante frisar que ter uma nacionalidade reconhecida fornece um senso de identificação e permite participação política através do voto (UNHCR, 2010, p. 2 ).]. Mesmo estando sob o escopo da Convenção, este grupo, em particular, apresenta situações nas quais nem sempre os indivíduos podem ser considerados refugiados, uma vez que, mesmo sem pátria, não têm medo ou receio de perseguição. Outro grupo que recebe atenção por parte da Convenção são os denominados IDPs, ou Internal Displaced People. “Grupos de pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas ou lugares de residência, como o resultado, ou para evitar, conflitos armados, situações de violência generalizada, violação dos direitos humanos ou desastres naturais ou provocados pelo homem e que não cruzaram as fronteiras de um Estado organizado” (UN Coordination of Humanitary Affairs – OCHA, 2001, p.1) que deixam suas regiões pelo medo de perseguição, tal qual um refugiado, permanecendo, no entanto, dentro dos limites territoriais de seu próprio país.
Já as migrações humanas são definidas como “movimentos de pessoas que ocorrem dentro, ou para fora de seus países de origem, por diversas motivações distintas, como: dificuldades econômicas, desastres ambientais e falta de alternativas para viver com dignidade.” (UNHCR, 2009, p. 9). Quando os migrantes, na sua busca por melhores condições de vida – sejam elas razões econômicas, habitacionais, educacionais, culturais ou de sobrevivência – , são forçados a realizar tais deslocamentos, fica entendido que eles foram, de alguma forma, forçados a deixar seu país de origem por motivos que não os de sua vontade própria. O conceito de refugiados se encaixa, portanto, dentro da categoria de migrantes forçados. A confluência de migrantes e migrantes forçados é entendida como um mixed migratory movement[Movimentos Migratórios Diversificado, com confluência nas mesmas rotas de refugiados, IDPs, migrantes.], sendo este um dos grandes desafios dos Estados ao lidar com a questão dos refugiados. A confluência das categorias – um dos principais instrumentos de auxílio do corpo administrativo estatal para fornecer ajuda eficiente para a população que busca asilo em outros países – de classificação desta população, dificulta o trabalho do Estado em diferenciar as principais necessidades de cada grupo e quais as medidas mais eficientes a serem aplicadas na busca por amenizar e solucionar os problemas dessas pessoas.
A distinção concreta entre estas diferentes categorias se apresenta como uma das pré-condições essenciais para tratar o assunto dos fluxos migratórios e de refugiados dentro das Relações Internacionais, sendo que a confusão ou as misturas destas diferentes categorias dificulta(m) não apenas a discussão, mas também a criação de medidas efetivas e eficientes para lidar com essa população que já enfrenta grandes dificuldades.
Refugiados ambientais: uma nova perspectiva para novas condições
Tendo sido um dos marcos fundamentais da discussão a respeito de refugiados, a Convenção das Nações Unidas a respeito dos refugiados de 1951 apresentou em seu corpo definições claras a respeito dos fluxos migratórios. Contudo, a mudança de realidades e condições de vida no mundo, durante os 30 anos que se seguiram ao estabelecimento da Convenção, apresentaram novos motivos e novas dificuldades aos Estados e à Comunidade Internacional como um todo, para lidar com a questão dos refugiados, uma vez que contextos, como o aumento da violência – principalmente em áreas como o Oriente Médio e a América -, não se encaixavam perfeitamente sob os instrumentos de proteção internacional anteriores.
Em resposta a esta nova demanda, a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, discutida durante o Colóquio Internacional de Proteção de Refugiados na América Central, nos anos 1980, apresenta a necessidade de que o conceito de refugiados anteriormente definido pela Convenção de 1951, fosse ampliado de forma a abarcar entre os definidos como refugiados, “pessoas que deixaram seus países por que suas vidas, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, por agressões exteriores, conflitos internos, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado de forma severa a ordem pública” (Cartagena Declaration, 1984, artigo 3).
Apesar de demandarem longos debates, o tratamento que a Comunidade Internacional e os Estados como um todo dão à questão dos refugiados, apresenta-se como passível de complementações em suas definições, à medida que mudam as perspectivas e realidades desta população – como se pode ver no caso da Declaração de Cartagena -, não sendo totalmente rígida, mas, sim, flexível para abarcar da melhor forma possível a população que necessita de auxílio.
Nos anos 1990, com o lançamento do Relatório do IPCC, a Comunidade Internacional se vê colocada diante de uma nova perspectiva global: uma das mais graves consequências das mudanças climáticas globais estaria sobre a migração de populações humanas (UNHCR, 2009, p. 1). Responsáveis por uma intensificação da escala e da complexidade do deslocamento global, as mudanças climáticas trazem à tona uma crescente ameaça à segurança e à paz internacional, e aos deslocamentos massivos, uma vez que a interação da mudança das condições ambientais com fatores como a insegurança alimentar, o crescimento populacional, urbanização, escassez de água, levam a um aumento e a uma alteração dos deslocamentos humanos. E alterações nas formas e nas características destes deslocamentos repercutem diretamente na maneira como Estados, organismos internacionais e a comunidade internacional, se posicionam e atuam frente a novas realidades da movimentação populacional.
Consequências, frequentemente frisadas, do aquecimento global como o aumento do nível do mar e alterações nos padrões climáticos agem de forma a intensificar outros desequilíbrios globais já existentes, produzindo fatores de instabilidade e aumentando o deslocamento. Entre as interações que causam as piores consequências para as populações e que se apresentam como estimulantes das movimentações de grupos humanos, é possível notar a diminuição das capacidades agrícolas – causadas por alterações nos ciclos climáticos – de países em desenvolvimento e a consequente disputa por recursos, como água e terras cultiváveis, que podem levar a conflitos e deslocamentos. No caso de regiões costeiras, a elevação do nível do mar já apresenta suas primeiras vítimas, como os habitantes da ilha de Tuvalu, no Pacífico, que foram obrigados a deixar suas regiões por medo de que o mar inundasse a ilha que hoje se apresenta a apenas 10 centímetros acima do nível do mar.
Esse novo fluxo migratório gerado por alterações climáticas tem sido tratado pelo termo de “refugiados ambientais” ou “refugiados climáticos”. Termos estes que vêm sendo usados para distinguir “pessoas que são forçadas a migrar por causa de desastres naturais repentinos, ou devido à atuação de mudanças climáticas de longo prazo, na região em que vivem” (UNHCR, 2008a, p. 8 ) do fluxo migratório já existe no globo.
Como o reconhecimento pleno de um indivíduo como o do refugiado depende da concordância da situação deste com a definição e as regras estabelecidas pela Convenção de 1951 e do adendo introduzido pela Convenção de Cartagena, a terminologia “refugiados ambientais” não é considerada como correta pela ACNUR, uma vez que esta não tem fundamentação sobre a Lei Internacional de Refugiados. Em partes, o não reconhecimento desta terminologia vem do fato de que a ACNUR acredita que o termo tem um potencial para danificar os conceitos já existentes, referentes aos refugiados, ao causar uma confusão sobre as verdadeiras condições necessárias para a determinação da categoria.
Apesar de não serem reconhecidos formalmente nas categorias pré-existentes, a população que se encontra em movimentação devido às mudanças climáticas recebe o reconhecimento da ACNUR como sendo um grupo que merece e necessita de ajuda humanitária, mesmo não estando sobre o escopo da proteção internacional. A ajuda humanitária em casos de desastres climáticos, como furacões e terremotos, já é uma prática de auxílio dessa Agência, mesmo que a população afetada não esteja sobre a proteção desse organismo.
Conclusão
A ampliação das discussões e do peso que as mudanças climáticas tem trazido não só para a Agenda Internacional, mas para a Comunidade Internacional como um todo, valoriza ainda mais a necessidade de que se pense a possibilidade de uma nova implementação no conceito de refugiados, abarcando, dentro deste termo, “pessoas que foram deslocadas através de fronteiras por causa de desastres naturais ou de mudanças climáticas de longo tempo” (UNHCR, 2008a, p.9), conforme já sugerido pela ACNUR perante estados e ONG’s.
A mudança das condições ambientais globais se apresenta como um dos principais fatores da atual discussão a respeito da segurança internacional, uma vez que, além de implicar em mudanças internas em Estados – como a dinâmica de produção agrícola, a diminuição de recursos e a perda de territórios, deslocamento populacional e destruição de infraestrutura dos países – acaba por implicar nas relações travadas entre os Estados, uma vez que a circulação da produção e das pessoas acontece fora dos limites territoriais estatais. Lidar com a questão ambiental é ter contato com a complexidade das Relações Internacionais e com as dinâmicas que esta apresenta para trabalhar e analisar as realidades globais.
Referências
ACNUR NOTÍCIAS: Guterres alerta sobre risco de deslocamentos devido a mudanças climáticas. Disponível em http://www.acnur.org/t3/portugues/noticias/noticia/guterres-alerta-sobre-riscos-de-deslocamentos-devido-a-mudancas-climaticas/. Acessado em 20 de novembro de 2011.
BATALHONE, Ana Patrícia; CALDEIRA, Caroline Monteiro; STORINO, Vitor Eiró – Refugee in the Americas and the meaning of the 60th anniversary of the 1951 United Nations Convention relating to the satus of refugees to the continent In We the peoples: Nurturing Human Security, Building a Peolpe-centered wolrd, Brasília, Universidade de Brasília, Gráfica Art Letras, 2011.
BAYLIS John, SMITH Steve, OWENS Patricia – The globalization of world politics, an introduction to internacional relations, New York, Oxford University Press, 2001.
BUZAN, Barry – Human Security in International Perspective In M.C Antonhy and M.J. Hassan (eds), The Asia Pacific in the New Millennium: Political and Security Challenges.
EVANS, Graham; NEWNHAM, Jeffrey – The Penguin Dictionary of International Relations, London, Clays Ltd, 1998, p. 75-77, 77-78, 149-150, 490-491.
OLIVEIRA, Maria José Galleno de Souza. Refugiados ambientais: uma nova categoria de pessoas na ordem jurídica internacional. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n 7, p.123-132, junho/2010 Disponível em: ‹http://www.reid.org.br/arquivos/00000177-11-maria.pdf›. Acesso em: 20 nov. 2010.
RIBEIRO, Wagner Costa,. Dos primeiros tratados à conferência de Estocolmo. In: A Ordem Ambiental Internacional. São Paulo: Editora Contexto Acadêmica, 2005, pg 53-132.
VIOLA, Eduardo. A Política Climática Global e o Brasil: 2005-2010. IPEA- Revista Tempo do Mundo, Brasília (DF): IPEA, v.2, nº2, agosto de 2010, p.81-117.
Fonte da imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiY3MS35HbpHOvWedvU1Ja2Ik5lLkv1WZpZezmqAdEfg5iDsxjKWzO1TZPykSSSWdDUcGxUAdbD1xkWhgn-Ioub7ISR84KdGzFgomaZHyijhJMtLs1rMaC09fHFQUpy8xoPRl2d1jBb-Wj1/s320/sem+t%C3%ADtuloiug.bmp
Fonte: Mundialistas
Nenhum comentário:
Postar um comentário