quinta-feira, 31 de março de 2011

A Intervenção militar na Líbia: aspectos e dilemas das Novas Guerras, por Paulo Gustavo Pellegrino Correa

A atual ação militar internacional na Líbia levanta aspectos inquietantes sobre as intervenções humanitárias. Justificativas morais que supostamente podem legitimar ações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização do Tratado do Atlantico Norte (OTAN) não convencem totalmente a comunidade internacional sua legitimidade, sobre o benefício dos seus efeitos e também sobre o preço da omissão. No presente artigo, buscamos trazer interpretações sobre as intervenções militares humanitárias que possam colaborar na análise dos acontecimentos atuais na Líbia.

As intervenções humanitárias militares que ocorreram a partir de 1994, após o genocídio de Ruanda que aconteceu diante de uma comunidade internacional passiva, correspondem à chamada terceira geração de missões de paz. Incorporou-se a idéia de “Estado falido”, que deveria ser estabilizado e reconstruído. O uso da força nas intervenções foi ampliado e buscou se legitimar por estar a serviço dos direitos humanos.

Existe uma mudança clara no modelo de violência empregada nos conflitos a partir da década de 1990, pois passou a estar direcionada aos civis. No início do século XX, de 80% a 90% das baixas em uma guerra eram de militares. Menos de um século depois os números se inverteram e a população local passou a ser foco das atenções internacionais. De acordo com Hardt e Negri:

A violência é legítima se sua base é moral e justa, mas ilegítima se sua base é imoral e injusta… A maioria das posições dos direitos humanos agora advoga violência a serviço dos direitos humanos, legitimado na sua fundação moral e conduzido pelos capacetes azuis das Nações Unidas. (HARDT, M. 2004. p. 27)

Para a pesquisadora Mary Kaldor, essa nova forma de violência pode ser qualificada como “nova guerra”, característica da atual era da globalização e que apresenta diferenças das guerras tradicionais e, portanto, de acordo com a autora, a solução para esse novo tipo de conflito não está na visão tradicional onusiana em resolução de conflitos armados.

A autora definiu em seu trabalho Las Novas Guerras: La violencia organizada em La era global as velhas guerras como aquelas ligadas à evolução do Estado moderno, ambos apresentando várias etapas nas quais caracterizariam os diferentes tipos de forças militares, estratégias e técnicas, diferentes relações e diversos meios de luta. (KALDOR, 2001, p.31). Um fenômeno no qual a distinção entre público e privado, interno e externo, econômico e político, civil e militar, portador legítimo das armas, o não combatente e o criminoso eram distinções claras.

As “novas guerras” devem ser interpretadas a partir do processo de globalização justamente por ela contar com uma marcante presença. Seu surgimento se dá em um ambiente de erosão da autonomia do estado e de seu monopólio de violência legítima e, em certos casos extremos, da desintegração do aparelho estatal (p.19).

Os conceitos de intervenção, de manutenção e imposição da paz utilizados por estados e organizações internacionais como a ONU e OTAN são fundados em idéias tradicionais da guerra. Na manutenção, a ação se baseia na hipótese de que os lados da guerra encontraram um acordo e o objetivo da operação é supervisionar e vigiar o cumprimento do acordo. Na imposição, os capacetes azuis passam compor um dos “bandos” da guerra e devem lutar. No entanto, para Kaldor o que é necessário não é apenas manter a paz, mas também se fazer respeitar as normas cosmopolitas, as leis internacionais tanto humanitárias como a de direitos humanos (p.160).

O respeito às normas cosmopolitas pode implicar no uso da força, mas sua aplicação precisa ser reformulada em alguns princípios:

- o consentimento: necessário para qualquer perspectiva de êxito pois não existe pacificação à força. As forças internacionais necessitam ser consideradas legítimas. No entanto, o consentimento incondicional é impossível. Se for possível estar de acordo com todos os lados envolvidos no conflito é evidentemente uma grande vantagem, mas o importante é o consentimento generalizado das vítimas e não o dos bandos.

- a imparcialidade: neutralidade e imparcialidade são conceitos que se confundiram na sua prática. Na imparcialidade, não há nenhuma discriminação em função da nacionalidade, raça, crença ou opinião política. Esforça-se para dar ajuda humanitária, prioritariamente às aflições mais urgentes. No princípio de neutralidade a ação externa não pode tomar partido nas hostilidades, tampouco se envolver em controvérsias de caráter político, religioso, racial e ideológico a fim de manter a confiança de todos e poder agir. A neutralidade se mostra essencial para a ação de organizações como a Cruz Vermelha que tem por objetivo somente a ajuda humanitária. Na tarefa de proteger a população civil e impedir a violação dos direitos humanos, insistir na neutralidade pode trazer confusão e até mesmo fazer com que as tropas internacionais diminuam sua legitimidade perante a população local.

- o uso da força em uma intervenção: seu emprego deve ser sempre o mínino necessário. Essa prática é um pouco incômoda para os exércitos modernos que são organizados a partir de uma lógica clausewitziana na qual o esforço de guerra tem por objetivo causar o máximo de números de baixas no outro bando e reduzir ao mínimo as próprias. Numa operação de paz, a força é empregada com a finalidade de proteger as leis cosmopolitas e os direitos humanos, causando o mínimo de baixas de todos os bandos, é uma atitude centrada em um novo soldado, o soldado-polícia internacional, que compõe uma tropa cosmopolita profissionalizada, disposto a arriscar sua vida não pelo seu país, mas pela humanidade.

Diante dos dilemas enfrentados pelas intervenções humanitárias, ou novas guerras, não há dúvidas que a omissão da comunidade internacional pode ter um preço humanitário de grandes proporções como foi o caso do genocídio ruandês com mais de um milhão de mortos em poucos meses. Entretanto, mesmo com a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, a ação militar internacional na Líbia não se mostra legítima o suficiente para enterdermos organizações como a ONU e a OTAN capazes de funcionar como polícias internacionais defensoras dos direitos humanos. A arbitrariedade da escolha das ações, os efeitos humanitários da própria força militar defensora dos civis e os efeitos das transformações de princípios como soberania e autodeterminação dos povos são elementos que compoêm um complexo quadro de análise ainda pouco trabalhado.

Referências Bibliográficas:

FONTOURA, Paulo Roberto Campos (1999); O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz. Brasília, FUNAG, 1999.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio (2004); Multitude: war and democracy in the age of Empire. New York, The Penguin Press.

KALDOR, Marry (2001); Las Nuevas Guerras: la violencia organizada em la era global; Tradução de Maria Luisa Rodríguez Tapia; Barcelona.

Paulo Gustavo Pellegrino Correa é doutorando em ciência Política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professor do curso de Relações Internacionais das Faculdades metropolitanas Unidas- FMU ( paulogustavo@hotmail.com)

fonte: Mundorama

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