domingo, 28 de novembro de 2010

A ESTRATÉGIA E A GUERRA

A ESTRATÉGIA E A GUERRA

Por: Roberto Loiola Machado

“embora praticamente sinônimo de política, que tem a seu cargo a direção da guerra, a grande estratégia se diferencia da política que define seu objeto. O termo grande estratégia serve para dar um sentido de execução de uma política, pois seu papel é o de coordenar e dirigir todos os recursos de uma nação ou de um grupo de nações, para a consecução de objeto político, visado com a guerra, que é definido pela política” (LIDDELL HART,1982: 406).


Existe um conceito pertinente à estratégia que contribuiu para a expansão do seu sentido cognitivo e que permitiu perceber sua crescente importância, o da “grande estratégia”. Seu emprego se dá, entre outros atos, por meio da avaliação e fortalecimento dos recursos nacionais, tais como os econômicos e os humanos.

Durante muito tempo, no entanto, o estudo da estratégia, bem como a utilização e a aplicação de conceitos correlatos e corolários ficaram circunscritos ao ambiente militar. Estratégia é um termo oriundo do grego strategos, palavra que era utilizada para definir o comandante da batalha, o general, ou melhor, o stratego.

Séculos se passaram, o mundo mudou, as sociedades se transformaram e o Estado-Nação começou a tomar forma. Este novo arranjo político-nacional reforçou o sentimento nacional na humanidade. Com o passar do tempo tornar-se-ia mais presente e expressivo. Desde então, e mais especificamente, após o surgimento do conceito de o “povo/nação em armas” durante a Revolução Francesa, o domínio da estratégia, antes restrito aos militares, começa a fugir do controle exclusivo destes e passa a ser algo pertencente à nação, passa a ser uma questão de Estado.

Historicamente a primeira vez que se tem notícia de que alguém se interessou, de forma organizada, em conjecturar a respeito de atos e/ou atitudes estratégicas foi há cerca de 2500 anos. Nesta época um sábio chinês chamado Sun Tzu elaborou um compêndio - A Arte da Guerra - estabelecendo vários procedimentos e/ou axiomas estratégicos que o governante da China deveria conhecer para que pudesse obter sucesso em suas empreitadas guerreiras. O mundo ocidental, no entanto, só veio a tomar conhecimento deste documento a partir de 1772.

No início do século XIX surge outro pensador que viria a se tornar famoso, o militar prussiano Carl Von Clausewitz1. Seu livro “Da Guerra” (On War), estruturado e publicado após sua morte, foi, e em alguns casos continua sendo, um referencial de estudos estratégicos, e muitos militares já o usaram como fonte de “cabeceira”. Hoje o “Da Guerra” ultrapassou os muros da caserna e é utilizado com certa freqüência no meio acadêmico.

No século XX surgiram outros estudiosos: Liddell Hart com o seu livro “As Grandes Guerras da História” (Strategy), André Beaufre com o “An Introduction to Strategy”. Há ainda outros. Houve inclusive brasileiros, como por exemplo, o Almirante João Carlos Gonçalves Caminha com o seu “Delineamentos da Estratégia”. Consolida-se a partir desse século a idéia holística da estratégia: de palavra intimamente ligada a guerras e batalhas militares transforma-se em expressão universal sujeita a várias interpretações e com uso em diversas culturas, sociedades, instituições, governos e nações. Governos preocupados com a defesa e/ou expansão de territórios, preocupados em subjugar habitantes alhures, e até mesmo interessados em propagar suas idéias, procuram nutrir-se de sua essência, e cada um aplicando a estratégia à sua maneira.

O termo estratégia transforma-se, portanto, em lugar-comum em todas as sociedades, ou em quase todas, se considerarmos as mais primitivas. Conceitos estratégicos definidos no passado são novamente estudados, apropriados e aplicados. Países e/ou nações empreendem estratégias político-militares apossando-se de aforismos estratégicos. O conceito passa inclusive a ser discutido em diversos fóruns estranhos à sua essência: o meio corporativo, por exemplo.

Quando do estudo mais acurado sobre a estratégia observamos que a guerra sempre serviu de inspiração no estabelecimento de seus conceitos e corolários. Isto desde milhares de anos atrás até os nossos dias, e no decorrer da história, esses dois conceitos, seus princípios, seus valores, suas formas, suas amplitudes e uma série de outros aspectos foram, e continuam sendo, objeto de atenção daqueles responsáveis pela sobrevivência dos Estados. Estratégia e Guerra são também estudadas por serem capazes de proporcionar segurança aos indivíduos sob tutela estatal.

Basicamente, o estudo exige quase sempre uma associação a um momento histórico e, a partir daí, se procura estabelecer relações, verificar o quantum do desenvolvimento e aplicação da estratégia influenciou ou interferiu na condução da guerra.

Alguns autores, quando abordam o tema, privilegiam o estudo da estratégia ou, de outra forma, privilegiam o estudo da guerra. Esta opção, no entanto, torna-se às vezes desnecessária e sem efeito, pois quase sempre é impossível estabelecer uma clara separação entre o que diz respeito às lides da estratégia ou às lides da guerra.

O campo de estudo da estratégia é muito grande. Ela pode, por exemplo, ser classificada como sendo indireta ou direta. A estratégia indireta aspira, por meio de manobras e não de combates, a inverter a relação de forças contrária antes de entrar em batalha. A direta busca o confronto, e ataque e defesa são atos próprios. Algumas vezes é melhor atacar, outras, defender.

Essa opção estratégica entre atacar e defender atormenta a todos que, em determinado momento, são obrigados a fazê-la. Clausewitz, percebendo a importância dessa opção nos campos de batalha dedicou-se a um estudo exclusivo sobre a defesa e sobre o ataque, e conclui que a forma defensiva da guerra é em si mais forte do que a ofensiva. É mais forte porque a defesa implica também, quando necessário, em uma resposta ao atacante, uma contra-ofensiva. Clausewitz argumenta ainda que ela, a defesa, possui três elementos decisivos: a surpresa, a vantagem oferecida pelo terreno e o ataque proveniente de qualquer direção. Mais ainda, a guerra não se consubstancia quando é encetada uma ação de ataque, e sim, quando é empreendido um ato de defesa, haja vista este último ter por objetivo direto o combate, e aplicar a defesa desferindo o ataque, ou combater, são a mesma coisa.

Além do que já foi dito acerca da teoria clausewitziana, pode-se afirmar que o seu trabalho publicado em 1832 teve mais uma grande contribuição aos estudos estratégicos: a inclusão da variável política. É dele o famoso axioma que reforça a idéia da relação existente entre a guerra e a política: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. E, da mesma forma que é quase impossível dissociar estratégia da guerra, é também quase que impossível dissociar, historiograficamente, a estratégia e a guerra dentro de um contexto político.

Influenciado pelas Guerras Napoleônicas, ele estabeleceu uma série de outros conceitos. Por exemplo: a diferença entre guerra absoluta e a guerra real, o centro de gravidade, e a trindade paradoxal (maravilhosa).

A guerra absoluta é pensada como sendo um conflito violento onde são desenvolvidas ações de caráter impositivo e energético, e ao planejá-la deve-se buscar, através do poder disponível, a vitória plena. Já a guerra real ocorre de maneira diversa das condições imaginadas. Clausewitz, na sua intenção de melhor esclarecer a diferença entre a guerra absoluta e a guerra real, estabeleceu inclusive um novo conceito o qual chamou de fricção. Fricção pode ser considerado como um conjunto de fatores, tais como acontecimentos fortuitos, o acaso e a incerteza que, estando presentes na concepção da guerra real, a torna diferente da guerra absoluta.

Centro de gravidade é um ponto inserido na estrutura do inimigo que, se atacado e eliminado, provocará o desmoronamento de todo o seu poder nacional, e esse ponto não precisa ser necessariamente de natureza militar. Na guerra do Vietnã, por exemplo, a opinião pública norte-americana teve todas as características de um centro de gravidade, e inúmeras ações implementadas pelos inimigos dos EUA visavam, de certa forma, atingir este ponto.

A trindade paradoxal (maravilhosa) significa dizer, em poucas palavras, que a guerra e a sua condução sofre influência de três fatores considerados de suma importância: os relacionados ao exército, ao povo e ao governo.

A guerra sempre teve presença marcante ao longo da história. Parte dela poderia até mesmo ser contada em termos de batalhas ocorridas. Hélio Jaguaribe estabelece inclusive uma interessante relação comparativa entre história, poder militar e batalhas:

uma análise comparativa do curso dos eventos multi-seculares, (...), proporciona, entre muitas outras ilustrações, uma compreensão mais clara da relação entre poder e as idéias. O poder, particularmente sob a forma de poder militar, emerge dessa análise como o principal acontecimento e a causa mais importante de eventos da história. A história é uma sucessão infinita de batalhas (JAGUARIBE, 2001: 667).


Em que pese o exagero reducional da história cometido por Jaguaribe, o tema Guerra sempre esteve realmente ligado à história. Ainda na Antigüidade um dos que conseguiu fazer um estudo historiográfico analisando batalhas foi Tucídides com o seu “A Guerra do Peloponeso”. Outro foi Heródoto, considerado o pai da história, que abordou as Guerras Médicas no seu livro “Histórias”. Há alguns autores, no entanto, que foram capazes de descobrir espaços de inteligibilidade e reflexão novos.

Luigi Bonanate conseguiu discorrer com grande perspicácia alguns relevantes aspectos afetos à guerra, conseguindo de maneira clara relacioná-la com a estratégia e com a política2. O seu “A Guerra” procura de início parametrizar a guerra, relacionando tipos, modos de se travá-la, objetivos e dimensões. Mais adiante ele deixa claro que estratégias já existiam desde a Antigüidade, e que elas ainda continuam a influenciar o ambiente de guerra. Neste ponto ele corrobora, em seu âmago, com idéias expostas por Martin Van Creveld em seu livro “Command in War”.

Creveld afirma que a estratégia sempre existiu. Relata, no entanto, que as técnicas, as transformações táticas e as inovações organizacionais fizeram surgir, no início do século XIX, um ponto de inflexão na sua história. Napoleão, Jomini e Clausewitz foram os responsáveis pela ocorrência deste momento. Creveld é ainda enfático ao afirmar que transformações tecnológicas ocorridas no século XIX e posteriormente no século XX influenciaram os ditames da estratégia e da guerra moderna (CREVELD, 1985:18).

Bonanate segue seu trabalho comparando dois autores que abordaram a estratégia: Sun Tzu e Maquiavel3. Maquiavel escreveu no século XVI um trabalho considerado similar ao de Sun Tzu, porém mais extenso, e é possível observar vários pontos em comum entre as obras. Segundo Bonanate:

Sun Tzu e Maquiavel refletem sobre realidades, pelo menos em parte, análogas, mas o que parece mais significativo (mas também assombroso) é que entre os dois escritos é possível encontrar assonâncias e consistências extraordinárias, que usaremos como prova da objetividade das condições estratégicas dos conflitos (BONANATE, 2001: 70).


Esta última assertiva retirada do livro de Bonanate é muito interessante. Ele ao fazê-la está analisando Sun Tzu e Maquiavel sob a ótica da História Comparada.

De fato, a comparação tem servido a vários campos da ciência para que conhecimentos sejam consolidados. Segundo Witold Kula, nenhum trabalho científico, por mais limitado e monográfico que seja, pode dispensar totalmente o método comparativo, pois é impossível a introdução de novos elementos em um terreno qualquer do conhecimento sem compará-los com os já conhecidos; esta comparação, embora às vezes não explícita, é absolutamente necessária, pois de outro modo não se poderia dar um nome aos mencionados fenômenos novos (KULA,1973: 571).

Voltando a discutir sobre a guerra, diríamos que ela é, sem dúvida alguma, um ato passível de condenação. Todos – ou quase todos – almejam viver em paz, mas, contrariando a vontade da maioria, ela ocorre. Dessa forma, há sempre a preocupação de explicitar uma razão para a sua ocorrência. Guerra justa e guerra santa são, por exemplo, expressões que em determinados momentos históricos foram usadas como justificativas da existência de guerras. Ela seria justa quando realizada, por exemplo, com o objetivo de aplacar algo desestabilizador da ordem vigente, e santa quando encetada por motivos religiosos. Há ainda o conceito de que a guerra existe para promover a paz. Immanuel Kant declarou que “a guerra visa à paz” e Tucídides: “a guerra dá à paz sua segurança” (TUCÍDIDES, 1972: 108).

As frases acima tentam obviamente justificar a ocorrência de guerras. Elas traduzem a idéia de que diante do sentimento de percepção de ameaça – que causa insegurança –, se justifica uma guerra que poderia garantir uma paz segura.

Corroborando com essa idéia podemos citar a Guerra do Iraque do século XXI. Na concepção do governo norte-americano a manutenção do regime de Saddam Hussein significava a existência de uma paz insegura, pois, a qualquer momento nações poderiam ser ameaçadas se ele, Saddam, usasse as Armas de Destruição em Massa (ADM) de que supostamente dispunha. Dessa forma, seria justificável apeá-lo do poder de modo a trazer uma situação verdadeira de paz, ou seja, uma paz segura (SARFATI, 2005: 67).

Por fim, Estratégia & Guerra formam um binômio que deveria despertar mais a atenção de governos, pois ele, se bem entendido, estudado e aplicado, permite, entre outros aspectos, a execução de políticas de segurança nacionais adequadas, assegurando a sobrevivência do Estado e a sua defesa contra possíveis ameaças.

REFERÊNCIAS

BONANATE, Luigi. A Guerra. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

CLAUSEWITZ, C. On War.
Hertfordshire: Wordswort Editions, 1997.

CREVELD, Martin Van. Command in War. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

KULA, Witold. Problemas y métodos de la história económica. Barcelona: Ediciones Península, 1973.

LIDDELL HART, Basil Henry. As Grandes Guerras da História. São Paulo: IBRASA, 1982.

JAGUARIBE, Hélio. Um Estudo Crítico da História – vol.2. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

SARFATI, Gilberto. Teorias de Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005.

SUN TZU. A arte da guerra. Rio de Janeiro: Record, 1983.

Notas

1 Carl von Clausewitz foi militar e estrategista da Prússia, região atualmente pertencente à Alemanha. Foi diretor da Escola Militar de Berlim nos últimos treze anos de sua vida, período em que escreveu a sua obra Von Kriege (Da Guerra). Suas lições de estratégia vão, porém, além de aspectos militares propriamente ditos, para se constituírem, inclusive, numa profunda reflexão sobre a filosofia da guerra.

2 Luigi Bonanate é escritor italiano e Professor de Relações Internacionais em Turim.

3 Maquiavel, além de escrever “O Príncipe”, é autor de uma obra que tem o mesmo título da confeccionada por Sun Tzu: “A arte da guerra”.



MACHADO, Roberto Loiola. A estratégia e a guerra. Rio de janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, ano 2, n. 28, 2007.[ISSN1981-3384]

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