No século XVI, o pensador florentino Nicolau Maquiavel já alertava para os desafios de se empregar mercenários em um conflito. O filósofo apontava principalmente para a efemeridade da lealdade desses soldados, motivados por razões pecuniárias e capazes de mudar de lado em uma batalha sem grandes ultimatos.
Algumas centenas de anos depois, a volatilidade dos soldados contratados ainda é um ponto sensível no cenário global. Apesar da existência de normas internacionais claras que proíbem a utilização de mercenários – melhor codificadas no 1º Protocolo Adicional de 1977 da 4ª Convenção de Genebra de 1949 – o emprego desse tipo de combatente está longe de se ver extinto. Mais importante, a privatização do uso da força ganhou novo fôlego com a entrada de atores ainda mais sofisticados: as chamadas Companhias Militares Privadas (CMP). Famosas principalmente pelo seu emprego maciço nas guerras do Afeganistão e do Iraque, principalmente por parte dos Estados Unidos, tais empresas acabaram tendo seus nomes ligados a uma série de violações humanitárias. A mais famosa, envolvendo a morte de civis iraquianos por contratados da norte-americana Blackwater, trouxe à tona a dificuldade de se classificar juridicamente tais empresas. Apesar de poderem, a priori, ser definidas como mercenárias, não há consenso internacional sobre como enquadrá-las juridicamente.
Mercenarismo como confronto
O uso de soldados contratados, vale ressaltar, não está restrito às potências Ocidentais. Há registros de sua utilização em países africanos, como Serra Leoa e, de forma bastante expressiva, na Líbia. Grande parte dos dados sobre o emprego desse tipo de combatente neste país ainda são desencontrados, principalmente em razão da guerra civil de 2011, recém encerrada. Com isso, parte dos dados apresentados aqui é derivada de pesquisas de campo realizadas pelo autor em 2009 e 2012, principalmente no norte do país. Com isso, fica óbvia a necessidade de futuras pesquisas, com um maior leque temporal, no sentido de aprofundar as descobertas.
Desde a chegada de Muammar Gaddafi ao poder, na década de 1970, o uso de contratados em conjunto com tropas formais se tornou padrão nas forças armadas líbias. Justificando o uso desse tipo de combatente através de um discurso anti-ocidental, o ditador líbio criou um exército híbrido, em que estrangeiros eram arregimentados de diversos países. Entre 1973 e 1999, estima-se que pelo menos 5000 estrangeiros tenham se juntado às forças líbias, que contavam com um total de 50.000 soldados, incluídos os reservistas. Em 1985, todos os trinta e cinco pilotos de helicópteros de combate do país eram estrangeiros (PERCY, 2008).
Gaddafi justificava sua escolha apontando que a proibição do uso de mercenários era uma ferramenta intrusiva ocidental, criada com o único objetivo de impedir maior influência dos países islâmicos. Dentro dessa ótica, o transnacionalismo mulçumano acarretaria necessariamente na contratação de indivíduos fora dos Estados, sendo um dos fatores explicativos para o sucesso militar islâmico no passado. Apesar do discurso, a Líbia contratou também indivíduos não islâmicos, principalmente africanos: em pesquisa no país, em 2009, entrevistei angolanos, sérvios e paquistaneses, todos no exército de Gaddafi.
Os soldados contratados, que podemos definir como mercenários clássicos, foram substituídos por CMPs, principalmente norte-americanas a partir de meados da década de 1990; o que foi possibilitado pela então aproximação da Líbia com o ocidente. Dentro do esforço de liberalização por parte de Gaddafi, segmentos das forças armadas foram privatizados, no mesmo molde das empresas de petróleo e telefonia. De qualquer forma, a tendência se manteve: soldados estrangeiros continuavam a compartilhar fileiras com nacionais, em alguns casos, até em posições de comando.
Queda e fuga
O fim do regime de Gaddafi, em 2011, acarretou modificações importantes não só para o país – mas para todo o contexto regional. A vitória rebelde – apoiada pela Zona de Exclusão Aérea coordenada pela França e os EUA – não só destituiu o ditador, como efetivamente fragmentou o exército nacional. Apesar de não existirem dados consolidados sobre esses pontos, testemunhos locais indicam que os mercenários foram os primeiros a desertar, abandonando as posições assim que as tropas oposicionistas se aproximaram (MARTINOVIC,2012). O alerta de Maquiavel, nesse caso, parecia soar extremamente contemporâneo.
Notam-se dois tipos de comportamento por parte dos soldados contratados após a troca do regime: um primeiro grupo permaneceu no país, enquanto que o segundo se retirou. As Companhias Militares Privadas, mesmo as que atuavam com Gaddafi, continuaram, em sua maioria. A norte-americana BlueMountain Group, no país desde 1991, ganhou novos contratos, agora para proteção de diplomatas ocidentais. A empresa era responsável, por exemplo, pela proteção da embaixada dos Estados Unidos na cidade de Bengazi. O prédio foi atacado e queimado em setembro de 2012, acarretando na morte do então embaixador norte-americano na Líbia.
Com os mercenários clássicos, que atuavam sem ligação com uma empresa e chegaram ao país principalmente na década de 1970 e 1980, a situação foi distinta. Por seus vínculos serem principalmente com as Forças Armadas, e não com os demais setores governamentais, um número expressivo de tais soldados contratados debandou, como supracitado. Um primeiro grupo, temendo represálias do novo governo, fugiu para os países do entorno. Era comum, em campos de refugiados fronteiriços da Líbia, estabelecidos durante a guerra civil, observar antigos combatentes da era Gaddafi pedindo auxílio para retornar aos seus Estados de origem.
Outro segmento dos mercenários, contudo, estabeleceu uma posição distinta. Uma vez que não existiu, por parte dos vencedores, uma política específica para lidar com esses atores, grupos de contratados se viram, em um curto espaço de tempo, sem ocupação. Ainda portando as antigas armas, a maioria dos ex-soldados possuía relações étnicas com grupos do entorno. Assim, vistos como párias pela maior parte das novas lideranças líbias, a migração para esses grupos se tornou uma opção natural.
A chegada de um número expressivo de novos combatentes pode servir como uma das variáveis explicativas para os recentes casos de violência na Argélia e no Mali. Em ambos os países, grupos armados da etnia tuareg receberam apoio de um número expressivo de ex-soldados da Líbia, desde dezembro de 2012 (GOSH, 2012). Gaddafi recrutara centenas de combatentes do Mali nos últimos anos, principalmente nas semanas finais antes de sua queda, e é bastante provável que a grande maioria esteja retornando para o país. Apesar do conflito armado na ex-colônia francesa possuir múltiplas explicações, não se deve diminuir o papel dos ex-mercenários na galvanização dos conflitos. Interessante apontar ainda que uma vez que o grau de identificação desses grupos transborda as fronteiras estatais, existe a possibilidade da violência atingir os países vizinhos – o que, de certa forma, já vem acontecendo em menor grau.
Uma vez que o emprego de soldados contratados, seja do tipo clássico ou através das CMPs, tem se mostrado cada vez mais disseminado, é necessário que se criem ferramentas políticas com o intuito de se lidar com esse tipo de tropa em momentos de desmobilização. Apesar de já existirem preocupações nesse sentido com soldados regulares, o caráter transitório dos mercenários acaba por torná-los menos visíveis às forças interventoras, por exemplo. Com o crescente estabelecimento de lealdades e identificações além do Estado, sejam através de etnias ou práticas religiosas, a tendência de que tais grupos sirvam de catalisadores para instabilidades regionais é considerável.
Bibliografia
- AVANT, Debora (2005). The Market for Force: The Consequences of Privatizing Security. 2ª edição. New York: Cambridge University Press , 301 páginas
- BRANCOLI, Fernando (2013 – No prelo). Gaddafi e Estados Unidos: análise política do emprego de soldados contratados na Líbia, in TOSTES,A.P., RESENDE, E.; TEIXEIRA, T. Estudos americanos em perspectiva: relações internacionais, política externa e ideologias políticas, Curitiba, Appris, 2013
- GHOSH, Palash (2011). Gaddafi hiring Tuareg warriors as mercenaries in Libya: reports. Disponível em http://www.ibtimes.com/gaddafi-hiring-tuareg-warriors-mercenaries-libya-reports-273593. Acesso em fevereiro de 2013.
- MARTINOVIC, Jovo (2011). Gaddafi’s Fleeing Mercenaries Describe the Collapse of the Regime. Disponível em http://www.time.com/time/world/article/0,8599,2090205,00.html#ixzz2K1wgvMQz. Acesso em fevereiro de 2013
- PERCY, Sarah (2008). Mercenaries: The History of a Norm in International Relations. London: Oxford University Press, 350 páginas
Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp | Unicamp | PUC-SP). É professor substituto do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre 2008 e 2011 realizou pesquisa no Norte da África, principalmente na Tunísia, Líbia e Egito (fbrancoli@gmail.com).
Fonte: Mundorama
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