Erik Prince, recentemente indiciado como membro ativo de um programa de ‘assassinatos seletivos’ da CIA, ganhou notoriedade como presidente da empresa-gigante de segurança privada Blackwater, empresa que é hoje objeto de investigação federal acusada de suborno, julgamento privado e tortura de cinco ex-empregados, com julgamento marcado para o mês de julho. Em movimento que visa a responder aos que o criticam, o milionário ex-fuzileiro de grupo de elite da marinha dos EUA convida o jornalista para acompanhá-lo até o coração de sua empresa, nos EUA e no Afeganistão, para mostrar o papel que tem na guerra dos EUA contra o terror.
Erik Prince, fundador da empresa de segurança Blackwater (recentemente renomeada Xe), na sede da empresa, Virginia.
Fotografia por Nigel Parry.
“Minha empresa e eu nos colocamos a serviço da CIA, em algumas missões muito perigosas” – diz Erik Prince, enquanto corre os olhos pela fortaleza onde vive, cercado por 7 mil acres, numa propriedade na área rural de Moyock, Carolina do Norte. “Mas quando parece politicamente conveniente a uns ou outros, sou sempre o primeiro que empurram para debaixo do ônibus”. Prince, fundador da Blackwater, a mais conhecida empresa mundial de prestação de serviços militares privados está soltando fogo pelas ventas milionárias. Quer desabafar. E quer que todos ouçam o desabafo.
Erik Prince enfrenta hoje um problema de imagem – desses que não há publicidade comprada na Avenida Madison [1] que resolva. Aos 40 anos, herdeiro de fortuna construída em Michigan com rede de lojas de revenda de peças para automóveis e ex-fuzileiro do corpo de elite da Marinha dos EUA, conseguiu a façanha de ser crucificado no plano real e, também, no plano simbólico.
Em Washington, Prince tornou-se bode expiatório para todos os erros e tragédias do governo Bush no Iraque – embora alguns dos feitos da Blackwater tenham sido citados para neutralizar as críticas.
Deputados, senadores, advogados, grupos de direitos humanos e noticiários descreveram Prince como aproveitador, beneficiário da guerra, que reuniu uma quadrilha de bandidos e milicianos capaz de derrubar governos. Seus empregados têm sido repetidamente acusados de uso excessivo, eventualmente mortal, de força, no Iraque. De fato, vários iraquianos morreram em confrontos com o ‘exército’ da Blackwater. E em novembro, ao mesmo tempo em que um Grande Júri na Carolina do Norte analisava longa lista de acusações contra a empresa, meia dúzia de processos civis fermentavam no estado da Virginia; e, enquanto cinco ex-gerentes da Blackwater preparavam-se para enfrentar julgamento, acusados da morte de 17 iraquianos, oNew York Times publicou, em matéria de primeira página, que a empresa de Prince, no dia seguinte à tragédia, tentara subornar funcionários do governo do Iraque para que mudassem seus depoimentos.
São acusações que, para Prince, não passam de “mentiras (…) sem provas, sem substância, sem documentos [e] anônimas” (A marca Blackwater está de tal forma associada a crimes em geral, qualquer tipo de crime, que até os Talibã fizeram circular teorias conspiratórias, segundo as quais a empresa de Prince estaria operando infiltrada também em ações com suicidas-bomba no Paquistão).
Simultaneamente, em Hollywood, cidade que ama acima de tudo no mundo um vilão boa-pinta, Prince, louro, com físico e ares de Daniel Craig, tornou-se obsessão de batalhões de roteiristas. No filme State of Play, uma empresa-clone da Blackwater (PointCorp.) usa sua rede de mercenários para vigilância ilegal e assassinatos de encomenda. Na série 24 horas, Jon Voight encarnou Jonas Hodges, versão apenas muito superficialmente diferente de Prince, cuja empresa (Starkwood) ajuda um senhor-da-guerra africano a contrabandear gás venenoso a ser empregado contra alvos norte-americanos.
Mas a verdade sobre Prince talvez alcance magnitudes mais estranhas que qualquer ficção. Nos últimos seis anos, parece ter vivido vida aterrorizantemente dupla. Publicamente, trabalhou como presidente e diretor da Blackwater.
Nos planos privado e secreto, opera como superagente da CIA, ajudando a planejar, financiar e executar operações que vão desde infiltrar seus funcionários em áreas de “acesso negado” – locais nos quais a inteligência oficial dos EUA não consegue entrar –, até reunir equipes cujos alvos são membros da al-Qaeda e seus aliados.
Prince, segundo fontes que conhecem suas atividades, trabalha como ativo da CIA: numa palavra, como espião. Enquanto sua empresa se ocupa em fazer jus aos mais de 1,5 bilhão de dólares em contratos assinados com o governo entre 2001 e 2009 – atuando, dentre outras funções, como uma espécie de guarda pretoriana da segurança do pessoal da CIA e do Departamento de Estado além-mar – Prince tornou-se uma espécie de “Faz-Tudo” na guerra ao terror. Seu acesso a forças paramilitares, armas e aviões, e uma infatigável ambição – atributos contra os quais se mobilizam seus críticos –, tornam Prince extremamente valioso para a inteligência dos EUA. (…)
Mas Prince, com novo governo no poder e os inimigos fechando o cerco, parece estar finalmente saindo do frio. No outono passado, por mais que raramente conceda entrevistas, Prince decidiu que era chegada a hora de contar sua versão da história – para responder à chuva de acusações, para revelar exatamente o que fizera à sombra do governo dos EUA e para apresentar seus argumentos. Também espera poder dizer porque, agora, está afastando-se de todo aquele passado.
Com isso em mente, convidou Vanity Fair para visitar seu campo de treinamento na Carolina do Norte, os escritórios em Virginia e os postos avançados no Afeganistão. Parece boa ocasião para saber o que planeja e oportunidade que não se desperdiça.
Personalidade Dividida
Erik Prince pode ser homem difícil de avaliar – como amálgama de caricaturas contraditórias. Foi dito “cristão suprematista”, favorável ao assassinato de civis iraquianos, mas financiou a construção de mesquitas no Oriente Médio e mantém um orfanato muçulmano no Afeganistão. Ele e sua família há muito tempo apóiam causas dos conservadores, financiam candidatos de direita e relacionam-se com evangélicos, mas o próprio Prince diz-se libertário e é católico romano praticante. Muitas vezes dito arrogante e recluso – um Howard Hughes, sem o TOC [Transtorno Obsessivo-Compulsivo] – participa de competições em que se combinam montanhismo-de-bicicleta, corrida, caiaquismo oceânico e rapel.
O denominador comum, aí, é a intensidade incansável, como se jamais desligasse. Sentado no fundo de um Boeing 777 a caminho do Afeganistão, passa os olhos num exemplar de Defense News, enquanto o filmeBusca Implacável (2008, Taken) brilha no sistema de televisão de bordo. No filme, Liam Neeson faz o papel de um agente aposentado da CIA, que organiza ação agressiva de resgate, quando a filha é sequestrada em Paris. O personagem de Neeson alerta os sequestradores de sua filha: “Se estão querendo resgate, aviso que não tenho dinheiro. O que tenho é um conjunto de habilidades (…), do tipo que fazem de mim o pesadelo de gente como vocês. Devolvam minha filha. Se não devolverem, eu procuro vocês, acho vocês e mato todos.”
Prince comenta: “Usei esse filme para ensinar minhas filhas.” (Pai de sete, Prince casou-se novamente depois de a primeira esposa morrer de câncer, em 2003.) “Queria que elas entendessem os perigos que há à nossa volta. E queria que soubessem como eu responderia.”
Impossível evitar a impressão de que Prince vê-se como predestinado. Aparece até nas histórias mais pessoais. Durante o vôo, conta que estava em Cabul em setembro de 2008, e recebeu telefonema, às 2h da manhã, da esposa, Joanna. Charlie, filho de Prince, então com um ano, caíra na piscina. O irmão, Christian, então com 12 anos, tirou-o da água, roxo e sem respirar; aplicou-lhe técnicas de ressuscitação e salvou o irmão. Christian e três irmãos haviam feito o curso de primeiros socorros, certificado pela Cruz Vermelha, no campo de treinamento da Blackwater.
Mas a história continua, porque havia poderes superiores em ação, naquela noite. Ansioso para chegar logo à casa, Prince descartou o itinerário regular, que implicava passar uma noite no hotel Marriott em Islamabad, e encontrou um vôo direto. Naquela noite em que Prince dormiria no hotel, o local foi alvo de ataque terrorista à bomba, que matou mais de 50 pessoas. Prince diz, como se fosse simples: “Christian salvou a vida de Charlie e Charlie salvou a minha.” Às vezes, a convicção de que a história reserva-lhe lugar especial é quase evangélica. Pressionado a falar sobre os que o acusam de ser mercenário – palavra que detesta –, desfia uma lista de militares não regularmente alistados, dentre os quais, Lafayette, aliado dos colonos durante a Guerra da Independência.
O estado padrão, em Prince, é a prontidão. Vive de dentes cerrados e músculos tensos. Não relaxa e não descansa. À espera na fila de revista no aeroporto Dulles, algumas horas antes, Prince recita uma homilia: “Cada vez que um norte-americano passa pela segurança, gostaria que parasse e pensasse ‘O que o governo dos EUA faz que tanto perturba os terroristas?’ Equipes de desarme, drones Predator, esquadrões da morte. Tudo é a mesma luta.”
Não é só empáfia. E o próprio Prince é familiarizado com vários desses recursos. Como outros mercenários, conhece as dificuldades de comandar uma empresa que para muitos não passa de ‘agência de aliciamento de bandidos e empregos temporários’. Muitos de seus contratados deixaram postos militares ou nos serviços de inteligência, atraídos pelos salários muitas vezes superiores para trabalho semelhante. ‘Trabalho’, aí, é proteger vidas, defender vidas e, sendo preciso, matar. Para encontrar os quadros de que precisa, Prince teve de reunir inúmeros veteranos condecorados, tanto quanto tipos mais sinistros, quadrilheiros, assaltantes e espiões, dentre outros.
Erik Prince voa sempre em aviões de carreira. Não só por ser mais barato (“Por que eu teria de pagar para trabalhar? Vôo normalmente, e chega-se à mesma hora”) mas, também, porque atrai menos atenção. Considera-se homem marcado. Classifica os diplomatas e dignitários que a Blackwater protege como “padrão Al-Jazeera de valor”, o que significa, segundo ele, que “bin Laden e seus bandidos adorariam matá-los em ação espetacular e mostrar pela televisão, em todo o mundo.”
Saindo do avião no aeroporto internacional em Cabul, Prince recebe tratamento, ele também, pelo “padrão Al-Jazeera de valor”. É imediatamente metido num carro que o esperava e que o leva até um segundo carro, algumas centenas de metros adiante, uma minivan surrada, absolutamente local, com bichinhos e cartões com orações pendurados ao espelho retrovisor. A equipe de projetos especiais da Blackwater no Afeganistão é responsável pela segurança de Prince quando está no país. Exceto pelo idioma, os homens são absolutamente idênticos a todos os afegãos que se veem pela rua. Têm longas barbas e turbantes e usam a roupa tradicional, de camisa até a canela, sobre calças bufantes. Removem os óculos escuros de Prince, vestem-lhe colete à prova de balas e dão-lhe trajes afegãos para que se troque. Entregam-lhe também um aparelho de rastreamento que envia sinais sobre sua localização e um telefone celular programado para chamar o centro de operações táticas da Blackwater.
Prince no centro tático de operações em uma empresa de base em Cabul. Fotografia por Adam Ferguson. |
Já na van, a equipe faz-lhe um briefing de segurança. Com fotos de satélite da área, revisam toda a rota até a sede da Blackwater e mostram a ele onde há armas e munição dentro da van. Os homens o previnem de que, caso sejam incapacitados ou mortos em emboscada no caminho, Prince deve assumir o controle das armas e apertar o botão vermelho junto ao freio de emergência: assim enviará um sinal eletrônico silencioso de alarme, pedindo reforços.
Falcões Negros e Zepelins
A Blackwater tem origem humilde, quase simplória. A empresa tomou forma nas turfeiras de Moyock, Carolina do Norte – nada que se assemelhe a ninho de empresas que interessem à Defesa como prestadoras de serviços secretos.
O pai de Prince morreu em 1995, de ataque cardíaco (o pastor evangélico James C. Dobson, fundador da igreja conservadora “Focus on the Family”, fez a oração para encomendar o corpo). Edgar Prince deixou de herança importante negócio de fabricação de peças para automóveis em Holland, Michigan, com 4.500 empregados e ampla linha de produtos, de visor antirreflexo a abridor programável de portas de garagens. Erik, 25 anos, servia como fuzileiro em corpo especial da Marinha (serviu no Haiti, no Oriente Médio e na Bósnia), e nem ele nem as irmãs tinham condições de assumir a empresa. Venderam a Prince Automotive por US$1,35 bilhão.
Já há algum tempo Erik Prince e amigos fuzileiros, de fato, conversavam sobre a ideia de criarem uma empresa de treinamento integral de fuzileiros, que substituísse a colcha de retalhos de instituições de treinamento existentes. Em 1996, Prince foi dispensado com honras do seu corpo de fuzileiros e começou a comprar terras na Carolina do Norte. “A ideia não era só vender serviços para a Defesa, em si”, diz Prince, completando a imagem do que pareceria uma espécie de Disneyland para machos-alfa. “Eu pensava num campo de treinamento obrigatório para militares e, sobretudo, para a comunidade de operações especiais.”
O negócio andou devagar. Os fuzileiros da Marinha logo apareceram – em janeiro de 1998 – mas eram poucos e, quando o Centro Blackwater de Alojamento e Treinamento foi oficialmente inaugurado, em maio daquele ano, amigos e conselheiros de Prince acreditavam que ele estivesse enterrando bom dinheiro em terreno ruim. “Muita gente dizia ‘Não passa de acampamento para meninos ricos’”, diz Prince. “Não entenderam o que eu estava fazendo.”
Hoje, o local é centro de uma rede de instalações onde são treinadas cerca de 30 mil pessoas por ano. Prince, proprietário de um avião-robô de dimensões zepelinescas e que gastou 45 milhões para construir uma frota de veículos de transporte blindados e à prova de bomba para conduzir seu pessoal, viaja seguidamente para o campo pilotando ele mesmo seu Cessna Caravan, que decola de sua casa na Virginia. O campo de treinamento tem pista privada de pouso.
Os hangares abrigam um verdadeiro zoológico de aviões de guerra: helicópteros Bell 412 (usados para seguir ou conduzir diplomatas no Iraque), helicópteros Black Hawk (atualmente passando por processo de adaptação para atender às exigências de segurança de um cliente de um dos estados do Golfo), um avião Dash 8 (que transporta soldados e veículos no Afeganistão). No campo de treinamento, com mais de 52 cenários, há vilas virtuais desenhadas para mostrar todos os tipos imagináveis de ameaça real: pequenas praças cobertas de carros explodidos, situadas junto a cruzamentos de rodovias e portos.
Num desses cruzamentos, equipes vestidas como a SWAT atiram com metralhadoras, rifles e pistolas; noutro, oficiais de polícia deslocam-se ao longo da mais longa estrada artificial do mundo, ao longo da qual e em cujos acostamentos explodem, para efeito de treinamento, todos os tipos de minas terrestres e bombas.
Em consonância com o nome original da empresa, o prédio central, de pedra, vidro, concreto e toras de madeira, parece de fato o centro de um acampamento, ou um supermercado de aluguel de material para camping com atenção especial ao setor de esteróides. Aqui e ali há detalhes especialmente projetados, como maçanetas em forma de cano de espingarda. Nas mesas do salão de entrada, onde, noutras empresas, encontrar-se-iam exemplares de Us Weekly, a Blackwater oferece revistas especializadas em contraguerrilha, com matérias de capa do tipo “Como Destruir a Al-Qaeda.”
A verdade é que sem Al-Qaeda não existiria Blackwater. A Al-Qaeda pôs a Blackwater no mapa. Nos dias imediatamente seguintes ao ataque ao navio USS Cole, dos EUA, em outubro de 2000, no Iêmen, a Marinha procurou Prince, dentre outras empresas, em busca de retreinamento para seus marinheiros, para o caso de ataques corpo a corpo, ou de curta distância. (Até hoje, diz a empresa, cerca de 125 mil membros do corpo da Marinha já passaram por seus programas). Além de engordar o caixa, o contrato com a Marinha ajudou a Blackwater a construir um banco de dados de militares aposentados – muitos dos quais veteranos das forças especiais – que poderiam ser recrutados como instrutores.
Quando a al-Qaeda atacou no território dos EUA dia 11/9, diz Prince, sentiu que tinha obrigação ou de realistar-se ou de oferecer-se para trabalhar para a CIA. Diz que se apresentou. “Fui rejeitado”, admite, com uma careta ante a ironia de se ter apresentado como recruta à agência que, mais tarde, dependeria dele. “Disseram que minhas qualificações ‘duras’ em campo não eram suficientes”. Indomável, decidiu orientar o cursor de ofertas de emprego na direção de uma convocação para o que, em seguida, seria convertido, essencialmente, em exército privado.
Depois dos ataques terroristas em Nova York, a empresa de Prince passou a trabalhar para o Departamento de Defesa, oficialmente, não clandestinamente, embora sempre em relativa obscuridade, em ações no Afeganistão e, depois da invasão pelos EUA, também no Iraque. Então aconteceu o 31/3/2004. Nesse dia, os guerrilheiros emboscaram quatro de seus empregados na cidade iraquiana de Fallujah. Os homens foram mortos a tiros, os corpos incendiados. Os cadáveres destroçados de dois deles foram pendurados em uma ponte sobre o rio Eufrates.
“Foi horrível de ver” – Prince relembra. “Estive na Marinha, em guerra, e jamais perdi homem que estivesse sob meu comando. Na Blackwater, jamais tivemos mortes, nem por acidente em treinamento com arma de fogo. E então, de repente, quatro dos meus rapazes haviam sido mortos e, pior, os cadáveres foram violados.” Três meses depois, regras editadas pelas autoridades da coalizão em Bagdá declararam imunes à lei iraquiana as empresas privadas que operavam no Iraque.
Consequência das mortes em serviço, as famílias dos mortos processaram a Blackwater, alegando que a empresa não oferecera proteção adequada aos seus entes queridos. Como resposta, a Blackwater processou as famílias por quebra de contrato que proibia seus empregados e respectivos inventariantes de processar a empresa em caso de morte em ação; a empresa também alegou que, dado que operava como extensão do corpo militar, não poderia ser responsabilizada por mortes em zona de guerra. (Passados cinco anos, o processo ainda não foi concluído).
Em 2007, investigação pelo Congresso dos EUA sobre o mesmo incidente concluiu que os empregados haviam sido enviados para área dominada pelos guerrilheiros “sem preparação, sem recursos e sem apoio suficientes.” Para a Blackwater, o relatório do Congresso não passou de “versão de um só lado, sobre um trágico incidente”.
Depois de Fallujah, a Blackwater tornou-se ‘de casa’. Sua missão primária no Iraque havia sido proteger dignitários norte-americanos, o que a empresa fez ao mesmo tempo em que construía uma imagem de invencibilidade, com homens pesadamente armados, em trajes de combate, correndo em veículos blindados pelas ruas de Bagdá com sirenes ligadas. O show e a demonstração ostensiva de grande poder de fogo, que chamou atenção para a empresa e a separou, tanto dos cidadãos locais quanto dos militares norte-americanos, reforçaram as acusações de emprego de força excessiva.
À medida em que a guerra avançava, avançavam também as acusações contra a empresa. Num dos processos, um dos empregados matou a tiros um iraquiano pai de seis filhos que estava parado à margem da estrada em Hillah (Prince disse mais tarde ao Congresso que o empregado foi demitido por ter tentado encobrir o incidente). Em outro, um técnico especialista em armas de fogo da Blackwater foi acusado de ter-se embriagado numa festa na Zona Verde e assassinado um dos guarda-costas do vice-presidente do Iraque. O técnico foi demitido mas não foi processado e, adiante, obteve acordo com a família da vítima, embora ilegal, que encerrou o processo.
Mas tudo isso empalidece, comparado aos eventos de 16/9/2007, quando uma falange de empregados da Blackwater saltou de um comboio de quatro carros numa esquina de Bagdá chamada Praça Nisour e abriu fogo contra a multidão. Quando a fumaça dissipou-se, havia 17 iraquianos civis mortos. Depois de 15 meses de investigações, o Departamento de Justiça acusou seis por massacre premeditado e outros crimes, concluindo que o uso da força fora, além de injustificado, também não foi provocado.
Um dos acusados reconheceu-se culpado e espera-se que testemunhe contra os outros, no julgamento marcado para fevereiro; até agora, todos os demais se declararam inocentes. O New York Times noticiou recentemente que, imediatamente depois do tiroteio, os altos executivos da empresa autorizaram pagamentos secretos de 1 milhão de dólares a autoridades iraquianas, para comprar seu silêncio – acusação que, para Prince, é “falsa”, insistindo em que “[nunca houve] nem planos nem qualquer discussão sobre subornar autoridades.”
A Praça Nisour gerou repercussões catastróficas para a Blackwater. As funções que desempenhava no Iraque foram reduzidas, os ganhos caíram 40%. Hoje, diz Prince, desembolsa $2 milhões por mês em despesas com taxas e advogados para responder aos processos civis e está sendo submetido a auditoria que, para ele, “é um exame proctológico gigante” por quase uma dúzia de agências federais. “Antes, investíamos em Pesquisa & Desenvolvimento, para construir melhores capacidades para servir ao governo dos EUA” – diz Prince. “Hoje, pagamos advogados.”
Nisso, não mente. Na Carolina do Norte, um tribunal federal investiga diversas acusações, inclusive de transporte ilegal de armas de assalto e silenciadores para o Iraque, escondidos em sacos de ração para cachorro (Blackwater negou essas acusações, mas confirmou que ocultava armas em contêineres de ração para cachorro, para evitar que fossem roubadas “por agentes de alfândega corruptos em países estrangeiros”).
Na Virginia, dois ex-empregados assinaram declarações judiciais nas quais dizem que Prince e a empresa Blackwater podem ter assassinado ou mandado assassinar pessoas suspeitas de colaborar com as autoridades dos EUA que investigavam a empresa – acusação que a Blackwater considerou “escandalosa e sem qualquer base.” Um dos empregados disse também, ante autoridade judicial, que empregados da empresa mantinham um arranjo de troca de esposas, para finalidades sexuais, acusações que, para a Blackwater, seriam “anônimas, sem provas e caluniosas”.
Enquanto isso, em fevereiro último, Prince montou uma cara campanha de reposicionamento de sua marca. Em 1996, depois da falência fraudulenta da empresa ValuJet, desapareceu a marca ValuJet, absorvida em fusão com a AirTran, que começou feliz vida nova. Seguindo a mesma fórmula, Prince decidiu fazer sumir a marca Blackwater, substituindo-a por “Xe”, abreviatura de “xenônio”, gás inerte, não combustível que, seguindo nisso a inclinação política de Prince, localiza-se na extrema direita da tabela periódica de elementos. Prince e outros altos executivos da empresa, entre eles, continuaram a usar o nome Blackwater. E, como os fatos não demorariam a comprovar, a reputação da empresa continuaria combustível como sempre.
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