domingo, 6 de março de 2011

"Primavera árabe": reflexões sobre a existência do direito à democracia ("right to democracy")

Inicialmente, cumpre destacar que a primavera árabe (Arab Spring) nada mais é do que o movimento em busca da democracia nos países islâmicos que teve início durante a administração do Presidente dos Estados Unidos George W. Bush em 2005. Atualmente, pode-se dizer que esse movimento democrático apresenta sua segunda onda, que começou a se intensificar no Oriente Médio e no norte da África, notadamente entre o final de 2010 e início de 2011, durante o governo do Presidente norte-americano Barack Obama. A primavera árabe tem levantado sérios questionamentos sobre a possibilidade da existência de governos democráticos nos países do norte da África e do Oriente Médio, que são conhecidos vulgarmente como "Mundo Árabe". Além disso, há sérias indagações sobre o futuro desses movimentos populares, mesmo após os sucessos parciais obtidos na Tunísia e no Egito. Há, ainda, o questionamento sobre a existência, de fato, do direito à democracia. [01], [02], [03], [04], [05], [06], [07]

Apenas a título didático, é importante relembrar os 03 (três) modelos normativos de democracia descritos por HABERMAS. De acordo com a primeira concepção de democracia, que é conhecida como liberal, o processo democrático tem o papel de programar o Estado de acordo com o interesse da sociedade. Assim sendo, a atuação política esgota-se na tentativa de agregar os interesses sociais privados junto ao aparato estatal. Dessa maneira, pode-se afirmar que o eixo do modelo liberal não entende a democracia como a autodeterminação democrática dos cidadãos, mas sim como a mera normatização de uma sociedade centrada na economia. [08]

Já de acordo com a concepção republicana, os direitos de participação dos cidadãos podem ser entendidos como liberdades positivas. HABERMAS sustenta que o direito ao voto deve ser visto como uma condição indispensável para a autodeterminação política, por meio da realização de contribuições autônomas e pelo fato dos indivíduos assumirem posições próprias. O autor sustenta que a vantagem da concepção republicana de democracia reside no fato de se entender a democracia como uma auto-organização política da sociedade por cidadãos unidos por meios de comunicação. Por outro lado, a desvantagem da concepção republicana reside justamente no fato de que não se compreende que os fins coletivos ou compreensão ética nada mais são do que a soma de interesses privados conflitantes. [09]

Cumpre, ainda, ressaltar que HABERMAS defende uma terceira concepção de democracia denominada de "teoria do discurso", segundo a qual o processo democrático confere força legitimadora ao processo de criação do direito, que se materializa no Estado democrático de direito, pois o processo democrático precisa assegurar, ao mesmo tempo, a autonomia privada (defesa dos próprios interesses) e a pública (defesa dos interesses comuns). Dessa maneira, HABERMAS entende que esse modelo de democracia legitima o Estado democrático de direito. Sendo assim, o autor afirma que a democracia não precisa mais operar com o conceito de uma totalidade social centrada no Estado. A democracia, de acordo com a teoria do discurso, se realiza por meio de uma rede de comunicação das esferas públicas e políticas. Por fim, HABERMAS entende que essas comunicações entre indivíduos geram resultados racionais em que os cidadãos atuam como participantes em processos de entendimento e assim, o processo democrático atua como um elemento de legitimação do Estado de direito. [10]

Ainda no que se refere à democracia, é importante mencionar que DWORKIN entende que a participação do cidadão nos rumos do Estado tem se tornado cada vez mais difícil numa democracia contemporânea caracterizada pelo multiculturalismo e pelo dissenso. No entanto, DWORKIN acredita na construção de um ambiente democrático que preserve a diversidade de opiniões como alternativa a característica homogeneizante do Estado Moderno. Sendo assim, entende o autor ser possível uma democracia associativa, em que todos os indivíduos sejam considerados importantes. Dessa forma, observa o autor que a democracia somente se torna efetiva quando todos os argumentos são debatidos. Por fim, DWORKIN entende que a melhor forma de democracia é aquela que trata todos os membros da sociedade em igual consideração, com a proteção das liberdades públicas e dos direitos humanos. [11]
Após uma breve exposição teórica de modelos sugeridos de democracia, passa-se agora a análise da indagação sobre a existência de um direito à democracia. Trata-se de questão tormentosa, mas é importante destacar que a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, por meio da Resolução nº 1999/57, pela primeira vez estabeleceu o direito à democracia (right to democracy). Tal direito foi construído levando-se como fundamento a autodeterminação dos povos e os princípios estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entendeu-se, assim, que a democracia é baseada na liberdade de manifestação e de escolha dos indivíduos, ou seja, a democracia encontra seu fundamento na idéia de que os indivíduos têm o direito de determinar seus sistemas políticos, econômicos, culturais e sociais. Além disso, a resolução das Nações Unidas reconheceu que a democracia era fundamental para a completa realização dos direitos humanos. [12]

Sendo assim, a Organização das Nações Unidas entende que o direito à democracia compreende as liberdades de expressão (freedom of speech) [13], de pensamento, de consciência e religião (freedom of religion), bem como as liberdades de associação e de assembléia (freedom of assembly). [14] Ademais, entende-se que o direito à democracia somente é garantido com a liberdade de se obter informações, o que necessariamente engloba a liberdade de imprensa (freedom of the press) [15] e o direito à informação. [16] Dessa maneira, o direito à democracia somente está apto a se desenvolver num Estado de Direito, em que o soberano se submeta as leis. Além disso, também há a necessidade de que haja mecanismos legais de proteção dos direitos dos cidadãos, bem como um Poder judiciário independente, que aplique os dispositivos legais ao caso concreto de forma imparcial. [17]

No que se refere ao direito à democracia, a Organização das Nações Unidas entende que a democracia encontra seu fundamento de validade no sufrágio universal e igualitário, que se traduz no direito de se eleger os governantes em eleições livres. Aponta-se, ainda, que o direito à democracia decorre do direito à participação política, o que inclui a igualdade de oportunidades para se candidatar aos cargos eletivos. Dessa maneira, salienta-se que o direito à democracia somente é consubstanciado com a criação de instituições governamentais transparentes e com mecanismos eficientes de controle externo e interno de suas atividades. Por fim, define-se direito à democracia como o direito dos cidadãos de escolher seus governantes por meio de mecanismos livres e periódicos de manifestação popular, em que se garanta a vontade da maioria e, ao mesmo tempo, se respeite a dignidade da pessoa humana em relação às minorias. [18]

Por todo o exposto, entende-se que a primavera árabe trata-se, na verdade, de um movimento democrático provavelmente associado à globalização da informação e aos novos meios de comunicação, em especial, a internet. Assim sendo, o amplo acesso à informação no mundo atual têm tornado cada vez mais difícil a permanência de regimes totalitários, tendo em vista que a internet retira dos regimes não democráticos a capacidade de controlar a informação. Além disso, entende-se que o movimento conhecido como primavera árabe representa um anseio popular legítimo, em que se busca alcançar um direito (right to democracy) reconhecido pela Resolução nº 1999/57 das Nações Unidas.

Por fim, verifica-se que a primavera árabe demonstra que a informação aliada à capacidade de mobilização das pessoas via internet representam ferramentas interessantes para a destruição de regimes ditatoriais. Ademais, é importante observar que a preservação dos canais de informação será fundamental para a construção de Estados democráticos de direito, em substituição às monarquias absolutistas e às repúblicas ditatoriais do norte da África e do Oriente Médio. Além disso, entende-se que os estados islâmicos enfrentarão enormes desafios após a queda dos regimes ditatoriais, entre eles, o estabelecimento de um estado democrático de direito, de caráter laico, que preserve a diversidade de opiniões [19], em que haja diálogo e que seja respeitada a dignidade da pessoa humana, tanto da maioria, quanto da minoria da população. [20]

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. AJAMI, Fouad. We have George W. Bush to thank for the Arab democratic spring. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
2. CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. "Freedom of assembly": precedentes sobre o direito de reunião e de assembléia nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2011.
3. CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of speech". Considerações sobre a liberdade de expressão e de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
4. CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of the press". Precedentes sobre a liberdade de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2748, 9 jan. 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
5. CABRAL, Bruno Fontenele. Reflexões sobre o direito à informação dos pacientes no Brasil e nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
6. CRUICKSHANK, Paul. Analysis: Why Arab Spring could be al Qaeda's fall. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2011.
7. DWORKIN, Ronald. La democracia possible: princípios para um nuevo debate político. Tradução Ernest Weikert Garcia. Barcelona: Paidós Ibérica S.A, 2007.
8. EL NAGGAR, Mona. The Legacy of 18 days in Tahrir Square. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2011.
9. FRIEDMAN, Thomas. B.E. Before Egypt. A. E. After Egypt. The NY Times. Disponível em: . Acesso em: 01 fev. 2011.
10. GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001.
11. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995.
12. HARSHAW, Tobin. How do you solve a problem like Mubarak? The NY Times. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2011.
13. LYNCH, Mark. Obama’s Arab Spring. Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2011.
14. OREN, Michael. Will Egypt be a partner in peace? Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2011.
15. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution 1999/57. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
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NOTAS:
1. HARSHAW, Tobin. How do you solve a problem like Mubarak? The NY Times. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2011.
2. FRIEDMAN, Thomas. B. E. Before Egypt. A. E. After Egypt. The NY Times. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2011.
3. EL NAGGAR, Mona. The Legacy of 18 days in Tahrir Square. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2011.
4. OREN, Michael. Will Egypt be a partner in peace? Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2011.
5. LYNCH, Mark. Obama’s Arab Spring. Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2011.
6. AJAMI, Fouad. We have George W. Bush to thank for the Arab democratic spring. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
7. CRUICKSHANK, Paul. Analysis: Why Arab Spring could be al Qaeda's fall. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2011.
8. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995, fls. 39-42.
9. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995, fls. 43-47.
10. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995, fls. 39-53.
11. DWORKIN, Ronald. La democracia possible: princípios para um nuevo debate político. Tradução Ernest Weikert Garcia. Barcelona: Paidós Ibérica S.A, 2007, p. 163-170.
12. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution nº 1999/57. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
13. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of speech". Considerações sobre a liberdade de expressão e de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
14. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. "Freedom of assembly": precedentes sobre o direito de reunião e de assembléia nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2011.
15. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of the press". Precedentes sobre a liberdade de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2748, 9 jan. 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
16. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele. Reflexões sobre o direito à informação dos pacientes no Brasil e nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2011.
17. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution nº 1999/57. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
18. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution 1999/57. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011.
19. DWORKIN, Ronald. La democracia possible: princípios para um nuevo debate político. Tradução Ernest Weikert Garcia. Barcelona: Paidós Ibérica S.A, 2007, p. 163-170.
20. GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 160.

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